Como anda a igualdade de gênero na Literatura?

Por Maria Amélia de Almeida Teles - 25 ago 2021 - 7 min

Pensar nas mulheres fazendo literatura e ocupando espaços nas estantes das livrarias, nas bibliotecas e nas salas de aula é um exercício necessário para se avaliar o processo emancipatório da humanidade. A literatura é a expressão criativa, estética e cultural da nossa linguagem escrita e lida.  Pela literatura, podemos alcançar uma avaliação profunda e abrangente de como anda a igualdade de gênero. 

A escrita possibilitou o aceleramento da produção de conhecimentos e o exercício da liberdade de expressão. As mulheres, no entanto, foram excluídas da escrita e da leitura ao serem alijadas dos processos educacionais e das construções simbólicas das relações sociais. Contrariando as regras patriarcais, houve mulheres que ousaram entrar na literatura. Ora, assinaram seus textos com pseudônimos, ora, com seus próprios nomes. E quando o fizeram, foram desvalorizadas em sua importância e no significado de suas obras literárias. A história registrou a escrita feita pelos homens, ignorando a participação das mulheres e as mantendo silenciadas. 

Só muito recentemente, do ponto de vista histórico, as mulheres passaram a ter uma participação visível, com status de cidadania, em todos os campos de produção de conhecimentos e, dessa forma, irromperam com a ressignificação da escrita, das palavras e expressões. A História das Mulheres, pesquisada e sistematizada por historiadoras feministas, o que ocorre somente a partir de meados do século XX, revela uma grande produção feminina literária, musical e de tantas outras artes. A criatividade feminina nunca deixou de pulsar e de se expressar em atividades cotidianas, sociais, literárias e políticas. Como a expressão literária das mulheres foi ocultada e colocada em plano bastante secundário, as historiadoras têm feito um trabalho minucioso de investigação e têm trazido à tona escritoras pioneiras que subverteram a ordem patriarcal. E para nossa surpresa, são muitas hoje.

A igualdade de gênero, seja na literatura, seja em outros espaços marcados pelos avanços civilizatórios, ainda é uma meta a ser alcançada. O número de mulheres que fazem literatura e que vivem dela é bastante menor do que o de homens, sem dúvida nenhuma. 

Citemos algumas das nossas escritoras. Lembrar delas é referenciar sua memória e colocar em destaque sua contribuição intelectual e de criação de novas maneiras de viver e sentir o mundo. Significa incentivar a leitura de suas obras literárias e de outras escritoras. Muitas delas foram pioneiras, como foi a maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), com o romance Úrsula, de caráter abolicionista, publicado em 1859. Foi a primeira obra a tratar desse assunto no Brasil e na América Latina. Ela foi a primeira romancista brasileira. 

Outras expressivas escritoras negras vieram depois: Ruth Guimarães Botelho (1920-2014), Carolina Maria de Jesus(1914-1977), Conceição Evaristo (1946-), Jarid Arraes (1991-), Cidinha da Silva (1967-), Ana Maria Gonçalves (1970-). 

Escritoras indígenas também fazem literatura com a escrita marcada pelas experiências e saberes dos povos originários. Elas têm usado a língua materna e a língua portuguesa para se tornarem protagonistas de suas atividades literárias. Escritoras e escritores indígenas, de acordo com a Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil, representam 26 povos indígenas. Na realidade, são 305 povos e 274 línguas indígenas. No Instagram Leia Mulheres Indígenas estão algumas dessas escritoras indígenas que, infelizmente, são ainda pouco conhecidas por nós. Uma delas é Auritha Tabajara, nascida em Ipueiras, no Ceará, em 1980. É considerada a primeira cordelista indígena do Brasil. Escreve contos, livros e cordéis em busca de “diálogos e desconstrução dos estereótipos vigentes na cultura brasileira sobre o corpo da mulher indígena, seu lugar no mundo, seus saberes tradicionais. Mostramos nossos rostos para dizer: Não somos Iracema!”. 

Mulheres brancas fizeram e fazem literatura. Nísia Floresta (1810-1885) é considerada a primeira feminista brasileira e escritora. Clarice Lispector (1920-1977), apesar de não ter nascido no Brasil, veio para o país com sua família, ainda criancinha, aos dois meses. Foram viver em Recife. Fez questão de se naturalizar brasileira. Foi escritora e jornalista. Temos também Lygia Bojunga (1932-), uma das maiores expressões da literatura infantojuvenil. 

São muitas as escritoras, mas, se compararmos com os homens, ainda somos minoria. A produção literária em destaque é dominada pelos homens. O que prevalece no mundo editorial é uma reprodução da própria sociedade, onde homens brancos são a esmagadora maioria nos postos de decisão e de poder. É só dar uma olhada nas pessoas que compõem a Academia Brasileira de Letras (ABL), inaugurada em 1897. Amélia Bevilácqua, primeira mulher a se candidatar à ABL, em 1930, teve seu nome recusado sob a alegação de que a palavra “brasileiros” significava que somente os do sexo masculino poderiam fazer parte da instituição. Em 1977 entrou a primeira mulher, Rachel de Queiroz (1910-2003). A segunda, em 1980, Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982). Mais tarde, em 1985, entraram Lygia Fagundes Telles (1923- ) e Nélida Piñon (1937-). Em 2001, Zélia Gattai (1916-2008). Depois, em 2003, Ana Maria Machado (1941-). Em 2009, Cleonice Berardinelli (1916-) e, por último, em 2013, Rosiska Darcy (1944-). Em mais de 120 anos de existência, somente oito mulheres fizeram parte da instituição.

É preciso lembrar que, no Brasil, as mulheres só foram autorizadas a frequentar a escola pública em 1827. Antes desse tempo, “o ideal de educação feminina circunscrevia-se exclusivamente às prendas domésticas. Nem mesmo a língua portuguesa sabiam falar as mulheres de certas regiões do Brasil, nos séculos XVI e XVII.” (SAFFIOTI, 2013). Justificava-se a ausência de assinatura das outorgantes nos testamentos daquela época, usando os termos: “por ser mulher e não saber ler”. A escola pública, do século XIX enfatizava que as meninas deveriam ter mais educação da agulha do que instrução.

 A jornalista Mariana Romanelli comenta que dos 130 romances brasileiros lançados em 2004, numa lista para um prêmio literário, apenas 31 títulos eram de autoria de mulheres, o que representava 23,8%. 

A pesquisadora Regina Dalcastagnè concluiu que as personagens femininas representam 37,8%, 31,7% dos narradores e 28,9% dos protagonistas. (DALCASTAGNÈ, 2004).

Jarid Arraes (1991- ), uma jovem negra, escritora, poeta e cordelista, nascida no Cariri, Ceará, começou a ter interesse pela literatura lendo livros escritos por homens brancos, do sul e sudeste brasileiros. Em seu depoimento, publicado em vídeo, “Da leitora à escritora e a importância de diferentes vozes”, ela diz que quando se viu adulta, com 19 anos, começou a se perguntar onde estavam as autoras mulheres e buscou na internet. Encontrou “Os Cadernos Negros”, do Quilombhoje. Foi quando leu os textos de Conceição Evaristo (1946-), Miriam Alves (1952- ) e Djamila Ribeiro (1980-). Ela, então, se perguntou: “Será que eu também posso ser escritora?” Queria escrever cordel. Mas os temas eram muito machistas e os homens eram os protagonistas. As mulheres eram muito estereotipadas e as pessoas negras tratadas de forma caricata. Ela conseguiu romper com essas barreiras e se tornou uma escritora com mais de 70 títulos publicados e criou o Clube de Escrita para Mulheres.

É preciso reforçar na pedagogia literária o estímulo da leitura de escritoras. Divulgar e disponibilizar suas obras literárias, poéticas e ensaístas. As escritoras brasileiras escrevem para ser lidas, criticadas e estimularem o surgimento de novas escritoras.

Como Jarid Arraes e tantas outras, as mulheres no século XXI reinventam a vida e fazem literatura, escrevem livros de romances, de contos, de poesias. Vendem livros e há livrarias que exibem suas obras nas estantes. Reinventaram a vida como poetizou Cecília Meirelles (1901-1964): pois a vida “só é possível se for reinventada”.

Referências:

DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem no romance brasileiro contemporâneo 1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira contemporânea, Brasília, n°. 26, p. 13-71. jul/dez 2005.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

Maria Amélia de Almeida Teles

Maria Amélia de Almeida Teles, conhecida também como Amelinha Teles, é jornalista e escritora. Integra a União de Mulheres de São Paulo (UMSP), organização autônoma de mulheres. É educadora popular feminista em direitos e coordenadora do Promotoras Legais Populares e do Maria, Marias, sendo o último uma realização da UMSP com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). É autora de vários livros e artigos sobre feminismos, direitos humanos das mulheres, violência de gênero e creches.

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