OS 60 ANOS DE QUARTO DE DESPEJO: ENTREVISTA EXCLUSIVA – PARTE 2

Por Coletivo Leitor - 17 fev 2021 - 8 min

O livro Quarto de despejo completou seis décadas de existência em 2020. Alvo de muitas pesquisas acadêmicas, a obra tem feito parte da lista de leituras obrigatórias de importantes vestibulares de todo o Brasil.

Carolina Maria de Jesus revelou em seu diário uma história que até hoje reflete as lutas e as dificuldades dos moradores das favelas pela sobrevivência. Em comemoração aos 60 anos da do livro, a Somos Educação convidou Fernanda Miranda, pesquisadora de autoras negras brasileiras; Conceição Evaristo, autora e doutora em literatura comparada; e Vera Eunice, professora e filha caçula de Carolina Maria de Jesus, para discutir a obra e o legado deixado pela autora de Quarto de despejo.

Flávia dos Prazeres, apresentadora do programa “Café Filosófico”, conduziu a conversa transmitida ao vivo em setembro de 2020. Confira a seguir alguns trechos extraídos desse encontro.

Flávia: Vera, você acha que o modo de ler Quarto de despejo mudou? Como você acha que ele repercute hoje?

Vera: Eu acho que ele repercute hoje e vai repercutir sempre, porque é muito moderno, atual. As favelas se modificaram muito pouco, com os mesmos problemas ou até piores. O livro nos anos 1960 e hoje não têm muita diferença. Eu, como dou aulas para crianças pequenas na periferia, vejo crianças chegando na escola com fome, descalças, sem roupa, sujas. Não são todas, mas uma grande porcentagem chega assim. Você as coloca na sala de aula e elas não conseguem entender o que o professor está falando porque querem comer, e a gente tem que providenciar uma alimentação mais rápida. Depois que elas comem, você vê a diferença. Eu olho pra elas e vejo a minha vida, a minha vida que foi retratada no Quarto de despejo. Eu tenho feito palestras e percebo como os adolescentes adoram a obra, como as meninas negras adolescentes se imaginam na Carolina. Vejo essas meninas fazendo teses, a Fernanda Miranda, vejo a Conceição Evaristo e a mãe dela se inspirando em Carolina. Então eu vejo, sim, a Carolina muito atual. Ainda mais agora que o livro está nos vestibulares. Eu vejo a emoção dos adolescentes, eles me marcam muito. É o mesmo choque que eles têm com a realidade e a mesma sensação em escolas da periferia e em escolas abastadas.

Flávia: Muitos países conheceram a literatura brasileira a partir das traduções de Quarto de despejo. O que você tem a dizer sobre a repercussão internacional da obra de Carolina Maria de Jesus?

Vera: A obra saiu em vários países e Carolina fez algumas viagens. Agora mesmo, por causa da pandemia, não pude ir a um encontro de mulheres na escrita, nos Estados Unidos, para conhecer o movimento e falar mais sobre Carolina. Na Alemanha, a Andreia Ribeiro fez uma apresentação da peça teatral dela, Diário de Bitita. Eu fiz uma live para mulheres negras da França tem uns quinze dias. Hoje, Quarto de despejo tem sido muito mais valorizado internacionalmente. Tenho recebido propostas de Portugal para publicação, porque, na época, Salazar não autorizou. A Espanha vai publicar, a Colômbia quer publicar, a Itália também. Então, Quarto de despejo vai mostrar mundo afora os problemas que o Brasil enfrenta, mas nem só o Brasil. A repercussão estrangeira foi grande e agora está voltando.

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Flávia: Tem algum aspecto que você considera mal entendido ou entendido de modo parcial, limitado, da obra dela?

Vera: Sim. Muitas pessoas falam que não foi ela que escreveu Quarto de despejo, e sim Audálio Dantas. Ele diz que nem que ele fosse um mestre da literatura, um mágico, ele não conseguiria escrever a obra. Ali, ela escreve com o português dela, com os erros dela. Esse foi um problema que ficou muito marcado com o Audálio. Mas, claro, com certeza foi ela quem o escreveu e eu sou testemunha viva disso. Quarto de despejo é o retrato da nossa sociedade e tem inspirado muitas meninas das favelas a escrever a vida delas, o diário delas. O que mais ficou marcado para mim foi isso, dizerem que ela jamais escreveria. Também falam que Carolina é uma escritora de uma obra só, mas Quarto de despejo não é apenas uma obra, é um livro realista que retrata todo o problema, principalmente das comunidades, e eu sei que as comunidades e favelas têm muito apreço pela Carolina.

Flávia: Pensando nesse arco histórico de representação literária na favela que teve uma grande iniciação com Quarto de despejo e, posteriormente, com obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, e Capão Pecado, de Ferrez, gostaria que vocês falassem um pouco sobre esse arco de transformação e sobre essa literatura periférica.

Conceição: Carolina inaugura essa nova vertente na literatura brasileira. Para mim, é uma vertente muito específica porque o ato de escrever em si já contém outros atos reivindicativos, um ato de reivindicação à vida. Quando pensamos a escrita de Quarto de despejo ou de Cidade de Deus, Capão Pecado, temos que pensar o momento e o ambiente de recepção dessas obras. Quando Carolina escreve Quarto de despejo tem-se uma ambiência de recepção muito marcada pela classe média. Carolina é a grande novidade da classe média, e a Igreja católica, com a Teoria da Libertação, quer se colocar mais perto dos pobres, então, essa recepção se dá muito nesses espaços. Quando Paulo Lins e Ferrez escrevem, já temos outro momento. Temos uma recepção interna: são escritores ou temáticas que chamam atenção ou que passam a ser consumidas pelos próprios sujeitos que compõem essa história. A efervescência literária que se tem na periferia de São Paulo busca suas próprias histórias e se interessa pela leitura de Carolina. O fato de o livro ir para o vestibular ajuda muito nessa ambiência de recepção. Mas é totalmente diferente de quando Carolina escrevia na década de 1960 e quando esses autores escrevem. A ambiência que Carolina retrata em Quarto de despejo hoje, quando se tem Cidade de Deus ou Capão Pecado, é de uma outra favela, outra periferia. O tipo de violência que Carolina retrata inclui uma violência doméstica. A gente tem que pensar Carolina quando a gente pensa a Lei Maria da Penha, porque Carolina falava das mulheres que apanhavam ao lado de seus companheiros, uma violência no circuito doméstico. Hoje, essas outras narrativas sobre a favela trazem também uma violência que é praticada pelo próprio Estado. O mundo da favela mudou e, se ele mudou, ele também vai provocar narrativas diferentes. A matriz dessas narrativas, se hoje se pensa em narrativas de periferia, de pobres, de classes populares […] está em Carolina Maria de Jesus, que a inaugura.

Flávia: Pensando em novas narrativas, novas subjetividades, o que você elabora em relação à escrita das autoras negras do Brasil e todas as inspirações que Quarto de despejo tem, que Carolina nos ofereceu e nos oferece?

Fernanda: Eu acho muito importante a gente pensar também que quando Quarto de despejo é lançado, ele se torna uma plataforma, um território para essa configuração subjetiva. Na literatura brasileira, a gente não tem história de um livro desse gênero escrito por alguém que não corresponde ao perfil canônico brasileiro, do homem branco dos grandes centros urbanos, escolarizado etc. Eu gosto de pensar que a Carolina ensinou muita gente a ler. Quando a gente pensa a autoria negra, tanto a autoria de mulheres negras quanto a autoria negra de forma mais ampla, Quarto de despejo é, sem dúvida, um grande paradigma, não só porque ali a gente tem esse território de elaboração de uma subjetividade, de um pensamento de uma mulher negra observando a sua realidade e se observando o tempo todo, mas também porque temos ali uma outra perspectiva de narrar, de olhar, de construção de discurso sem paralelos em termos de Brasil e de língua portuguesa. É também uma escrita performática, uma narrativa com múltiplos adjetivos para além dessa questão tão colocada sempre que é a questão do documento. Há toda uma carga muito humana naquela literatura, no sentido de a gente notar ali um sujeito em toda a sua complexidade, se elaborando na escrita. Eu acho que é totalmente impossível a gente pensar a literatura de autoria negra sem pensar em Carolina Maria de Jesus, em todas as paisagens literárias que ela inaugurou e em como ela segurou o território para que nós hoje possamos também nos anunciar, construir e colocar as nossas ideias no mundo.

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