Não deixe o livro morrer!

Por Michele Iacocca - 16 jan 2019 - 7 min

O livro é supérfluo, desnecessário, inútil? Vai ser substituído pelas mídias digitais? Perdemos o fôlego para ler mais que um tuíte? O livro vai definhar e adoecer? O livro vai morrer?

O livro é história, é consciência, é aprendizado, é luz que leva à sabedoria e à compreensão de si mesmo e do outro.

Andei pensando sobre isso. Não sobre a perda da importância do livro, tão necessário que existia mesmo antes de ser inventado, mas sobre a absoluta e total necessidade dele na formação e na vida de uma pessoa.

O livro é história, é consciência, é aprendizado, é luz que leva à sabedoria e à compreensão de si mesmo e do outro. É o veículo máximo de toda a experiência humana, de toda sua evolução cultural, intelectual, anímica. O grande baú onde o ser humano consegue guardar sua história, suas descobertas e também seus sonhos, suas fantasias, seus subterrâneos e suas estrelas. Desde a Bíblia, os poemas heroicos, as grandes aventuras, os romances históricos e amorosos, os dramas e as tragédias, livros que ajudam a se conhecer melhor, a conhecer melhor o outro e a conviver melhor com todo mundo, com a natureza, com o planeta e com tudo aquilo que a gente tem dentro e que chama de sentimentos, às vezes caóticos, com toda sua força, seus mistérios e toda sua beleza.

Tenho certeza absoluta de que se todos tivessem consciência do que os livros dizem e nos trazem, o mundo estaria muito, mas muito melhor. Com mais paz, mais justiça, mais igualdade e menos intolerância, preconceito, violência e guerras. Com o ser humano mais consciente de si e de todos os valores e toda a luz que ele tem, como ser divino inclusive, capaz de criar e de gerar.

E essas coisas estão todas nos livros. É só procurar.

Por outro lado, mesmo sendo uma coisa pessoal, gostaria de dizer como me sinto sortudo  quando acho um poema que fica cantando na minha alma e volta a mim com força e doçura quando mais preciso, nos momentos difíceis. Quando percebo a força de Machado de Assis, que reconstrói um Rio inteiro, com gente e tudo, para o leitor. A sabedoria poética de Drummond, que encanta meu intelecto e meu coração. A profundidade e a doçura de Cecília Meireles que parece estar me dando sempre seu coração cheio de flores. O deslumbramento de eterno adolescente que sinto em Mario Quintana. Ou ler Guimarães Rosa e ter a sensação de que é o próprio vento dos sertões que está contando a história. Com isso, querendo dizer que um autor nunca está simplesmente contando uma história. Ele estimula e cutuca os lados mais escondidos e misteriosos do leitor. Levanta um por um os véus de sua alma, revelando tudo o que ela tem. Seu lado humano e seu lado transcendente e divino.

Se comer uma boa comida pode proporcionar um grandíssimo prazer, ler um belo livro, além do prazer da leitura vai lhe dar coisas que você, com certeza, guardará pelo resto da vida. Coisas que irão ajudá-lo – e muito – tanto na prática quanto na valorização de si mesmo, do seu próprio ser, e na relação com o outro e com o mundo, ajudando a compreender tudo cada vez melhor.

Tudo isso é o livro! E eu posso afirmar que quase tudo o que eu sou hoje devo ao livro.

Sempre fui um leitor curioso e agradecido e se tivesse de contar tudo o que os livros me deram, a própria vida não bastaria. Desde momentos maravilhosos de encantamento, dados pela leitura, aos lugares onde eu lia, como bosques, estradas solitárias, beira-mar, ao lado de uma cachoeira, na frente de entardeceres de tirar o fôlego e até dentro de um antigo anfiteatro, quando o Aquiles e o Ulisses estavam juntos, lendo comigo a Ilíada e a Odisseia. Ou ainda com pessoas queridas e amadas lendo histórias e poemas, fazendo de cada momento uma eternidade de luz. Tudo isso é o livro! E eu posso afirmar que quase tudo o que eu sou hoje devo ao livro.

Vim para o Brasil com 20 anos, já carregando comigo a Ilíada, a Odisseia, as histórias da mitologia grega e algumas das tragédias que mexiam comigo. E mais a Eneida, o Asno de Ouro do Apuleio, os Evangelhos, a Divina Comédia, o Decamerão, o Dom Quixote, e também o Pinóquio, os contos de Grimm, de Andersen e autores contemporâneos, como Thomas Mann, Pirandello, Pablo Neruda e Kafka, entre outros. Todos esses livros falavam da escuridão e da luz que cada um tem dentro de si. Do céu e do poço de cada um. Falavam de grandes valores heroicos e de mesquinhezas e covardias. Da grandeza e da pequenez humana. Do vulcão e do jardim perfumado que cada um carrega dentro de si. De como estamos sujeitos a erros e de como às vezes precisamos da guia e da ajuda.

E o livro foi o que mais me ajudou no país novo e estranho. Foi lendo que aprendi a língua, o jeito, a história, o ser e a alma do Brasil. Foram os autores – olha que li quase todos – que, como chefs de cozinha, me mostraram as cores, os cheiros, os sabores e as nuanças do meu novo lugar que virou minha nova casa. Onde passei a viver, a me relacionar, a amar e até a brigar, quando necessário.

Foram os escritores e os poetas – e nisso incluo músicos e cantores poetas, como Villa-Lobos e Luiz Gonzaga – que me mostraram desde o chão onde estava pisando até os lugares mais distantes e desconhecidos, os espaços mais infinitos com suas luas imensas e claras, os mais áridos sertões e os ventos e as músicas ou os dois juntos percorrendo imensidões. As cores das lendas indígenas, no meio das matas misteriosas e ricas como seus pássaros. As canções do grande mar noturno ninando suas jangadas.

E quem sabe, a voz dos vaqueiros de Guimarães Rosa não era a mesma dos pastores montanheses da minha infância, contando suas histórias medievais com toda a sonoridade do nosso antigo dialeto. Ou o cantar de Luiz Gonzaga, o mesmo do charreteiro vendedor de pratos que aparecia sem ninguém saber de onde, fazia seus negócios e ia embora de noite cantando versos do épico Orlando Furioso e sua voz forte e bonita se espalhava pelos vales e se ouvia mesmo quando só se viam as luzinhas das lanternas da charrete brilhando feito vaga-lumes, lá no fundo da estrada. Ou a mesma voz de Homero contando a história de Helena, de Páris, de Aquiles, de Heitor…

Eu que sempre amei os livros, com eles sempre me senti rico, mesmo quando estava sem um tostão. Nunca me senti solitário, mesmo estando sozinho.

Sempre sabendo que podia falar sobre tudo, pensar sobre tudo, procurar o que quisesse: fantasias, sonhos, poesia, beleza, virtudes, heroísmo, sabedoria, garimpo interior, autoconhecimento, coragem para novos caminhos, amor, remédio para dor de cotovelo, receitas de todo tipo, para a alma inclusive. Achados incríveis e surpreendentes, conselhos para tudo, etc., etc., etc.

Se precisasse de ajuda o livro sempre estaria lá.

Enfim, renunciar ao livro é como renunciar a uma boa parte de si mesmo. Matar o livro é quase uma tentativa de suicídio. Nada, nada mesmo pode substituir o livro e o que ele diz e, se você permitir, ele será seu grande companheiro pelo resto da vida.

Michele Iacocca

Michele Iacocca nasceu na Itália e veio para o Brasil com 20 anos. Escritor, ilustrador, roteirista e tradutor, Michele conta com mais de uma centena de livros publicados.

Vencedor de prêmios nacionais e internacionais, é um artista criativo e cheio de humor que consegue despertar nas crianças o amor pelo livro.

É autor de vários livros para crianças, como As aventuras de Bambolina, Chinelinho – uma história sem par, Nerina – a ovelha negra, Vocês pensam que é fácil?, entre outros.

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