Leitura utilitária e leitura de ficção e poesia

Por Ricardo Azevedo - 25 set 2018 - 3 min

Para além dos assuntos didáticos, sabidamente importantes, outras questões podem e devem ser tratadas na escola.

Tão importante quanto formar leitores é ensiná-los a diferenciar livros didáticos de livros de literatura.

É preciso, por exemplo, formar os estudantes de maneira que sejam capazes de diferenciar o que é autoridade e autoritarismo. É necessário que aprendam a lidar com a liberdade: ninguém é livre para destruir a sociedade ou a natureza em função de seus interesses individuais.

Além disso, os estudantes precisam compreender que os seres humanos são incapazes de viver sem uma sociedade e que, portanto, não são responsáveis apenas pela construção de suas vidas particulares, mas também pela sociedade em que vivem.

Os alunos devem saber que seres humanos se caracterizam pela incrível capacidade de construir linguagens e símbolos; que podem ter diferentes costumes, valores e crenças; que são capazes de pensar em assuntos abstratos como justiça, moral, política e estética; que podem transformar a natureza e a sociedade (para melhor ou para pior) etc.

Para tudo isso é fundamental que sejam leitores e que saibam diferenciar livros didáticos de livros de literatura.

Os primeiros são utilitários – pretendem ensinar algo – e para isso recorrem a textos objetivos e técnicos, afinal querem que 100% dos leitores tenham uma mesma e única interpretação. Sua relevância é imensa pois trazem informações relativas ao conhecimento oficial existente num dado momento.

Os segundos são especulativos, ficcionais e subjetivos. Tratam de assuntos humanos que ninguém pode ensinar: a construção de um sentido para a vida; as paixões humanas; a confusão entre realidade e imaginação; a busca do autoconhecimento; as ambiguidades e as contradições inerentes à existência humana, entre outros.

Tais assuntos, repito, não são passíveis de lições. Alguém que queira propor técnicas e exercícios visando a ensinar “como se apaixonar” não pode estar falando sério.

Mergulhados num livro de ficção ou de poesia, podemos acompanhar e nos identificar com um amor proibido; com a luta de alguém que tenta se encontrar na vida; com uma personagem lidando com a proximidade da morte; com as contradições e fraquezas de certo herói; com o combate a um déspota autoritário; com culturas desconhecidas; com a ironia e o humor, e por aí vai.

Creio, por fim, que a literatura entra na escola para, por meio da ficção e da poesia, tornar seus alunos mais humanos, expressivos e atentos à complexidade da vida e do mundo.

Ricardo Azevedo

Autor de vários livros para crianças e jovens, como A casa do meu avô, Aula de Carnaval e outros poemas, Contos de enganar a morte, Dezenove poemas desengoçados, entre outros, o paulista Ricardo Azevedo é também ilustrador, compositor e pesquisador. Dedica-se ainda a palestras e artigos sobre temas como discurso popular, literatura e poesia, problemas do uso da literatura na escola, cultura popular e MPB.

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