Quem tem medo da imaginação?

Por Lino de Albergaria - 27 fev 2019 - 7 min

Quando Tolkien escreveu O Hobbit e depois O Senhor dos Anéis, o mundo ressentia o impacto dos conflitos generalizados e aniquiladores que abalaram o século XX. O próprio autor foi combatente na Primeira Guerra Mundial. Muitos acreditaram que a criação de um cenário ficcional complexo e impressionante, mas tão alheio à realidade imediata dos leitores, seria uma compensação às dificuldades de uma época angustiante, de perdas humanas irreparáveis e da insegurança diante do futuro.

Hoje acompanhamos ao vivo e nos preocupamos com guerras localizadas em diversos países. Atentados terroristas frequentes, organizações criminosas agindo nas periferias urbanas. Desastres naturais ou provocados pela irresponsabilidade, além de uma agressividade coletiva advinda de antagonismos ideológicos e políticos.

Nossos dias, quase tão aflitivos como no século passado, ainda ecoam a atenção pelos personagens de Tolkien ou de J.K. Rowling, com Harry Potter, e novos títulos fantásticos. A fantasia segue atraindo leitores aos milhões, ávidos por aventuras que se instalam em surpreendentes e sedutores espaços imaginários.

Seria uma mera necessidade de escapar das permanentes tensões e frustrações da vida contemporânea? Ou este compreensível desejo de alívio das preocupações diárias encerra outras razões, não tão explícitas?

A imaginação na literatura

Isso nos conduz à essência dos enredos moldados pela fantasia. Durante toda sua história, a literatura para jovens, desde as primitivas narrações orais, passando pelos contos do Oriente e as histórias de fadas, recorreu à imaginação revelando um mundo de magia estranho à vida ordinária. Ela permitiu ao ouvinte ou ao leitor mergulhar em outro tempo, em outro lugar, voando pelos ares. Isso tudo, de carona com personagens que manejam tapetes encantados ou cavalos com asas. Dessa forma, a presença do herói torna-se um convite ao leitor para se aventurar por caminhos muito diferentes e impensados, eliminando os muros que vedam a plena liberdade da imaginação.

Constantemente, no entanto, a fantasia tem sido atacada pelo pensamento adulto, como atesta a própria trajetória dos livros infantis. Isso porque correntes pedagógicas, ideologias e comprometimentos religiosos insurgem, em espasmos, contra a característica mais antiga e provavelmente a mais forte da ficção para jovens.

Criticam, simultaneamente, o distanciamento dos fatos que efetivamente nos afetariam. Além da alienação conduzida por fadas e bruxas, ogros e duendes, gênios e animais falantes. A criança, privando-se da influência desses personagens, seria preparada para desenvolver uma consciência do real.

Seria melhor para ela se os livros documentassem a realidade. Dessa forma, abordando os diferentes aspectos da vida e das realizações humanas ou retratando vidas exemplares. Contudo, o leitor seria convidado a habitar um mundo mais insípido, sem lugar sequer para os espontâneos amigos imaginários.

Perseguindo a imaginação

Esse projeto, ao perseguir qualquer devaneio, fechando as portas a tudo que possa desestabilizar sua visão estrita de mundo, procura criar adultos limitados e controlados, supostamente maduros, mas desprovidos, em última instância, de inventividade ou de capacidade criativa.

Tornada inimiga e alvo de combate em certos meios, a história de cunho fantástico ou maravilhoso seria absurdamente responsável por uma futura atração pelas drogas ou pela adesão a seitas ocultistas. Incluindo algum perigoso culto às trevas. São, sobretudo, suposições, delírios de quem não controla a própria imaginação e coíbe a de outros.

Todas essas coisas existem por si mesmas e constituem outras agruras de um mundo que, por abrigar a humanidade, está cheio de imperfeições. Quem, sem comiseração ou empatia, só se preocupa em desentocar falsos demônios acaba invocando outros: a culpa, o medo e muita insegurança, além de discriminar aqueles que não pensam como ele.

Por que culpabilizar o conteúdo das histórias e não reconhecer nelas um passaporte para outro tipo de conhecimento?

Brincar com o medo, como faz qualquer conto de terror, não seria um modo de amenizar as sensações despertadas pela noite escura que revela nossa solidão ou pela insegurança despertada por situações e lugares estranhos? Ficcionalizar nossos temores não resulta numa atitude eficaz para reagirmos até que consigamos superá-los? Por que esse medo consentido ou fingido tanto agrada o público jovem? Não seria apaziguadora a abordagem do recorrente receio de enfrentar e admitir a morte, disfarçado nos jogos assustadores, mas frequentemente cômicos, com vampiros e zumbis?

Imaginação e símbolo

Desde Bruno Bettelheim, a psicanálise reconhece o valor dos contos de fadas, essa forte vertente da imaginação que lida com símbolos em relação profunda com nosso inconsciente. Os contos ditos maravilhosos possibilitam a verbalização de inúmeros medos e fantasmas comuns às crianças. Esses, mediados pela literatura, podem ser enfrentados de forma terapêutica. A fantasia, a partir de então, ganha um novo status. Provoca nosso equilíbrio, reage contra uma sucessão contínua de dias apreensivos ou cinzentos e depressivos.

Para Bettelheim, existe uma tarefa que se destaca na educação, e consequentemente da leitura. Ajudar a criança a dar sentido à vida, atravessando suas crises de crescimento e compreendendo melhor a si mesma e aos outros.

Pela imaginação e pela fantasia, no rastro dos antigos contos de fadas ou de autores como Lewis Carroll, Carlo Collodi, James Barrie ou Monteiro Lobato, podemos nos orientar melhor em relação ao impacto do desconhecido ao mesmo tempo em que exploramos a necessária e fundamental dimensão do amor pela vida. O final feliz, presente em tantas histórias, é um compromisso com o otimismo. Viver, com a esperança de momentos melhores, vale a pena.

O real e o maravilhoso

Monteiro Lobato fundiu no mesmo espaço o real e o maravilhoso. Personagens de reconhecível humanidade dialogam com uma boneca de pano e um sabugo de milho. Essa apropriação da livre imaginação está presente na geração de escritores nacionais que o sucedeu, especialmente em Lygia Bojunga. Ela, que além de questões existenciais relativas à identidade e ao crescimento do jovem, misturou, com a mesma naturalidade, seres humanos e bichos humanizados. A crítica internacional reconheceu a força dessa vertente literária. Assim, a autora foi a primeira brasileira a receber o cobiçado Prêmio Hans Christian Andersen. O próprio patrono do laurel, criando histórias inéditas, bebeu na fonte de fantasias do conto tradicional.

Nossas leituras nos levam, a partir da infância e da contribuição de ilustrações inteligentes e sensíveis, a conviver facilmente com as obras de arte que tornam o mundo mais interessante, admirável e colorido. Bons textos, temperados também com humor – essencial para que aprendamos a rir de nossas tolas pretensões e a esvaziar nossa vã arrogância –, nos divertem e renovam a capacidade de reconhecer o que, de outra forma, nos escaparia. Explorando com pertinência o simbólico e o imaginário, esses textos nos confortam quando admitimos o que não conseguimos explicar. Mistérios são mistérios e sempre desafiarão nossa curiosidade, outra poderosa motivação de todo percurso existencial.

Lino de Albergaria

Lino de Albergaria é escritor, tradutor e adaptador de clássicos. Também é autor de vários livros, entre eles O relógio do mundo, Bem-vindos à Casa da Neblina, Na Serra das Lianas, A Ilha do Tempo Perdido e Chá das Cinco.

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