Um límpido delírio

Por Fabio Weintraub - 11 mar 2020 - 11 min

No próximo sábado, dia 14 de março, aniversário do poeta baiano Castro Alves, autor do célebre poema Navio negreiro, por longo tempo costumava-se comemorar o Dia Nacional da Poesia. A data fora proposta pelo Projeto de Lei 3.308, de 1977, tendo sido posteriormente alterada pela Lei 13.131, de 2015, que transferiu a comemoração para o dia 31 de outubro, aniversário de outro grande poeta, Carlos Drummond de Andrade. Para muitos, no entanto, março contudo continua a ser considerado o mês da poesia, pois no dia 21 deste mês comemora-se também o Dia Internacional da Poesia, instituído em 1999 pela Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco).

À parte a disputa de datas, vale aproveitar o pretexto da efeméride para propor uma reflexão sobre a natureza do poético.

O que é a poesia? Que tipo de relação ela estabelece com a nossa vida? Quais os efeitos da construção poética sobre os que dela desfrutam? De que forma esse desfrute nos humaniza, configurando não apenas um privilégio, mas um direito pelo qual devemos lutar?

Eis algumas perguntas para as quais podemos ensaiar os mais diversos tipos de resposta. Que se veja, à guisa de exemplo, a resposta, aparentemente simples, oferecida pelo poeta italiano Giuseppe Ungaretti à pergunta “O que é a poesia?”.

COMMIATO                                                    

Gentile

Ettore Serra

poesia

è il mondo l’umanità

la propria vita

fioriti dalla parola

la limpida meraviglia

di un delirante fermento

Quando trovo

in questo mio silenzio

una parola

scavata è nella mia vita

come un abisso 

Giuseppe Ungaretti (1888-1970)                                                      

DESPEDIDA

Gentil Ettore Serra

poesia

é o mundo a humanidade

floridos pela palavra

a límpida maravilha

de um delirante fermento

Quando encontro

neste meu silêncio

uma palavra

cavada foi na minha vida

como um abismo

(Tradução: Ecléa Bosi)

     Ungaretti foi um dos nomes mais importantes da poesia italiana do século XX. Nascido em Alexandria, filho de pais luqueses, Ungaretti estudou em Paris, na Sorbonne, onde tomou contato com os movimentos de vanguarda, tendo sido amigo de Apollinaire e Gide. Combateu como soldado na frente do Carso e em Champagne. Em 1936 foi convidado pelo Governo de São Paulo para assumir a cátedra de Literatura Italiana na USP. Permaneceu no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e retornou à Itália em 1943, após a morte de seu filho Antonietto, tornando-se professor de Literatura Moderna na Universidade de Roma.

     “Commiato” oferece-nos uma boa mostra do verso despojado e sibilino que notabilizou a dicção ungarettiana. O poema é dirigido a Ettore Serra, amigo editor que publicou os primeiros poemas de Ungaretti e combateu a seu lado durante a Primeira Guerra. Composto por ocasião da morte de Serra, o poema é uma resposta póstuma (daí o título: “Despedida”) à pergunta com a qual Serra, mais de uma vez, assediou o poeta: ‘O que é a poesia?”.

     Vejamos o que diz Ungaretti:

poesia

é o mundo a humanidade

a própria vida

     A poesia, como a arte em geral, é o mundo. As árvores, os rios, as estrelas, as casas, os edifícios, os automóveis, toda e qualquer paisagem, todo e qualquer objeto, tudo cabe na poesia. O mundo sensível, a totalidade das coisas existentes, comparecem na poesia sob a forma de assunto, motivo. Mas isso não é tudo. A poesia é mundo não apenas porque representa as coisas por meio de imagens, mas porque ela mesma é uma coisa, um objeto, algo dotado de materialidade mundana, algo feito de som, ritmo, respiração.

    Poesia é também humanidade. Nossos valores, anseios, medos, nossa experiência histórica, nossas crenças e preconceitos, o campo todo da nossa subjetividade diz respeito à poesia. O mundo que nela entra, entra filtrado por essa subjetividade: é um mundo humano, habitado, não apenas aquele conjunto de objetos e leis que a “ciência” descreve e manipula com suposta neutralidade.

     Enfim, a poesia é “a própria vida”, como já dissera Aristóteles em sua Arte Poética. A poesia “imita” a vida, a natureza, mas não como uma fotografia ou um espelho o fariam. A poesia captura a realidade “florindo-a pela palavra”, isto é, desrealizando-a por meio de símbolos que a essencializam e a revelam em sua plenitude de significado. Difícil? A arte não é cópia da realidade: recorremos às palavras para descobrir algo que não se dá na experiência imediata. A literatura existe como um suplemento da vida: escreve-se (e lê-se) porque viver não é suficiente. A experiência precisa ser “organizada” a fim de que se torne inteligível para nós. Diz o poema:

a límpida maravilha

de um delirante fermento

     A poesia é maravilha e delírio. Ela alarga, faz crescer (como um fermento) os limites da nossa percepção habitual. Ela rompe com a ordem cotidiana e apresenta, mais que representa, as situações sob uma nova luz. A palavra poética não é aquela que nos serve todos os dias, cujo significado já está por demais estabelecido, oxidado e, portanto, sem condições de nos surpreender. Poesia é o feriado, o aniversário da linguagem. Não é apenas o que nos entra pelos olhos, mas o que modifica nosso olhar.

     Só que esse delírio, essa aparição insólita, não é caos e desordem como seria de se esperar. O discurso poético é misterioso, ambíguo, polissêmico, mas não é absurdo. O delírio é um delírio “límpido”. A alucinação é lúcida, organizada.

     E como se dá essa organização? De várias maneiras. Através do ritmo, por exemplo. Repare:

a/lím/pi/da/ma/ra/vi (7 sílabas)

deum/de/li/ran/te/fer/men (7 sílabas)

     Há regularidade métrica nesses versos (a tradução, neste ponto, conserva as características do original em italiano). Ambos foram escritos em redondilha maior. A contagem das sílabas poéticas difere da contagem gramatical: conta-se apenas até a última sílaba tônica de cada verso fundido-se numa única sílaba alguns encontros vocálicos (elisão). Tal regularidade é contrabalançada por uma variação na distribuição dos acentos. No primeiro verso temos a 2ª e a 7ª sílabas acentuadas, enquanto no verso seguinte o acento recai na 4ª e na 7ª sílabas. Da mesma forma, há uma repetição de sons (a vogal i, a consoante d e o grupo consonantal nt) que reforça a ideia contida nos versos:

a l-í-mp-ida marav-i-lha

d-e um del-i-r-ant– e ferm-ent-o

     Som e sentido se irmanam numa unidade indissolúvel: o significado espiritual das frases não mora atrás de sua “fachada” física (sonora), ele é fisicidade. A palavra não veste o pensamento, ela é pensamento; a forma é conteúdo.

     Prova disso é o fato de que à divisão formal entre as estrofes corresponde uma mudança de tom no poema. A primeira estrofe é composta por frases nominais com verbos de ligação na 3ª pessoa do singular. O tom é impessoal, generalizante, como convém às definições.

     Já na segunda estrofe, ocorre uma mudança: o enunciado não irrompe de um lugar abstrato, sem sujeito. A definição generalizante cede lugar a um depoimento pessoal, particular. O verbo “encontro”, na 1ª pessoa do singular, mais os pronomes possessivos (“meu” silêncio, “minha” vida) são os índices mais evidentes desta inflexão afetiva no tom do poema. Inflexão que, no entanto, nos dá elementos para entender o título do poema, enigma a decifrar. Quem está se despedindo? O que é que a poesia tem a ver com isso?

    Há um sujeito singular empenhado na resposta à questão inicial (o que é a poesia?). Mas agora a resposta é indireta: ela deve ser deduzida a partir de uma afirmação que é, ao mesmo tempo, metalinguística e emocional.

    E o que se revela nessa afirmação? Duas coisas. Primeiro, que a poesia demanda de nós uma procura. É preciso encontrar a palavra poética, ela não está disponível para nós a todo momento. A poesia é, portanto, trabalho, o poeta é um caçador da palavra certa, isto é, da palavra através da qual nossa experiência pode florir. Segundo, que essa procura é uma procura em meio ao silêncio. O silêncio é a terra na qual fermenta o adubo da poesia. É preciso se afastar do barulho cotidiano, dos automatismos da linguagem ordinária para poder ouvir a música das palavras. É preciso se “despedir” da palavra instituída, recuar diante da experiência para que esta se organize em maravilha.

     Diz Merleau-Ponty, expoente do pensamento fenomenológico francês:

     “Vivemos num mundo onde a palavra é instituída. Para todas essas palavras banais, possuímos em nós mesmos significações já formadas. Elas só suscitam em nós pensamentos segundos; estes por sua vez se traduzem em outras palavras que não exigem de nós nenhum verdadeiro esforço de compreensão. (…) Perdemos a consciência do que há de contingente na expressão e na comunicação, seja na criança que aprende a falar, seja no escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, finalmente em todos que transformam em palavras um certo silêncio. Está, entretanto, bem claro que a palavra instituída, tal como funciona na vida cotidiana, supõe preenchido o passo decisivo da expressão. Nossa visão sobre o homem permanecerá superficial enquanto não encontrarmos, sob o barulho das palavras, o silêncio primordial, enquanto não descrevermos o gesto que rompe este silêncio. A palavra é um gesto e sua significação um mundo.”[1]

     Mas este silêncio primordial não é um silêncio exterior. É um silêncio que se faz dentro de nós. E em nosso coração que a palavra poética é cavada “como um abismo”. Não é de estranhar, por essa razão, o fato de Ungaretti ser um poeta de poucas palavras…

     A poesia envolve sempre alguma espécie de luto ou de despedida. A palavra se ergue sobre uma ausência, uma perda. O sentido do que experimentamos só resplandece mediante um recuo em face do vivido.      Assim, e com isso podemos encerrar, o poeta transforma a dor de um infortúnio particular (a morte de um amigo próximo) numa reflexão sobre a gênese poética que, por seu caráter universal, comove-nos, revolvendo os sedimentos de nossa humanidade.

Conheça a seguir alguns títulos de poesia do Catálogo Somos

Conversa com Fernando Pessoa, de Carlos Felipe Moisés

Conversa com Fernando Pessoa

Marcos, estudante do 9º ano, vence um concurso sobre Fernando Pessoa e seu prêmio é entrevistar o autor. Assim, surge uma rica antologia do poeta português. Livro híbrido que cria uma moldura ficcional para propiciar o contato dos leitores adolescentes com um autor de múltiplas faces.


O navio negreiro e outros poemas, de Castro Alves

O navio negreiro e outros poemas

Grande nome da terceira geração do Romantismo brasileiro, a Geração Condoreira, o tema de Castro Alves é a ansiada liberdade. Em “O navio negreiro”, o poeta critica de forma cáustica a escravidão, um dos alicerces do Império. Os poemas reunidos neste livro pertencem à primeira fase de sua produção e foram publicados postumamente. Diz-se que o poeta “passou pela vida como uma estrela cadente: rápida e brilhantemente, marcando a memória das nossas letras com a luz de uma poesia quase adolescente, no ímpeto, e, ao mesmo tempo, madura, na mensagem”.


Minha ilha maravilha, de Marina Colasanti

São 35 poemas, a maioria com versos curtos e poucas estrofes. Poucas palavras, muito significado. Usando com astúcia os recursos poéticos (sonoridade, cadência, rima, figuras de linguagem, entre outros), a poeta reuniu nesta ‘ilha’ pequenas cenas do cotidiano, observações, visões e sensações. Tudo banhado de ludicidade e com um toque de fantasia.


Rima ou combina, de Marta Lagarta

Rima ou combina

Poemas com estrofes e versos curtos, com muito ritmo e rima, divertem, informam, incentivam a reflexão sobre aspectos de animais, frutas…


Limeriques das coisas boas, de Tatiana Belinky

Limeriques das coisas boas

Limerique é um tipo de estrutura poética de origem inglesa em que a estrofe se organiza em versos de 8-8-5-5-8 sílabas. Essa organização tem como resultado um ritmo leve, ágil, saltitante. Perita na criação de limeriques, Tatiana Belinky desta vez utilizou a fórmula para falar das coisas boas da vida: amigos, amor, natureza, frutas e comidas gostosas, brinquedos… enfim, todas as coisas que fazem da vida uma festa.

[1]MERLEAU-PONTY, Maurice — “O corpo como expressão e a fala” in Fenomenologia da Percepção — SP: Freitas Bastos, 1971, p. 194

Imagem de capa: Placa em homenagem a Giuseppe Ungaretti, 5 rue des Carmes (Paris). Fonte: Creative Commons