TRADUTOR, UM EMBAIXADOR SEMIÓTICO

Por Fabio D. V. Carneiro - 29 set 2021 - 8 min

O dia do tradutor (30 de setembro) enseja homenagens aos profissionais desse ofício que tanto colabora, não apenas para a comunicação humana e disseminação do conhecimento, da cultura e das artes, mas para a dinâmica das interações linguageiras. Traz à mente o verso de Lucrécio no seu famoso poema “De Rerum Natura”: Et quasi cursoris vitai lampada traduit – “E como os corredores, eles passam adiante a luz da vida” seria a tradução do latim. Lucrécio faz menção à modalidade de atletismo na qual os corredores passam o bastão para o companheiro que está à frente esperando para dar continuidade à corrida. Não seria assim o trabalho do tradutor?

Penso ser uma bela imagem para descrever o tradutor, pois para o poeta, nessa corrida que é a empreitada do ser humano, o que é repassado são as representações, os modos de ser e de fazer, os valores e conhecimentos construídos coletivamente. Tudo isso por meio da linguagem. Por essa razão, Lucrécio escolhe o verbo “traduit” para dizer “passam adiante” que, é claro, dá origem ao verbo “traduzir”.

Como em toda profissão de vital importância, os desafios do tradutor também são enormes. Se a linguagem é mediação e interação, a tradução é a mediação da mediação, é interação a partir da interação. Passar adiante as “luzes da vida” produzidas por outros e distribuí-las de maneira segura entre as comunidades linguísticas exige não só conhecimento linguístico, mas extrema sensibilidade. Exige ter as “antenas ligadas” para as escolhas de palavras e da ordem dessas palavras quando a língua é colocada em uso. Às vezes é preciso perceber também as omissões, aquilo que deixou de ser dito, proposital ou inadvertidamente pelo autor e resistir à tentação de “completar” seu pensamento. A esse fenômeno de poder escolher entre diversas possibilidades e “jogar” com o dito, o não dito e a forma de dizer damos o nome de Pragmática, uma dimensão da Linguagem na qual o tradutor deve navegar com maestria.

Aqui utilizo “desafios” e não “dificuldades” da tradução porque o desafio é algo potencialmente entusiasmante, capaz de gerar o desejo da vitória. A dificuldade é como se fosse um “bicho de pé” que só serve para incomodar. Os desafios da tradução são todos instigantes e nos levam a refletir, crescer e pensar. Alguns deles são oriundos da própria natureza das Língua Naturais (português, espanhol, francês, etc.). 

Primeiramente, nenhuma dessas línguas é monolítica. Só o francês contém mais de 17 comunidades dialetais que deram origem ao bretão, ao languedoquiano, ao valaisiano e tantas outras “modalidades” de francês igualmente legítimas entre si. As línguas naturais literalmente “andam” pelos espaços geográficos, a exemplo do latim que de feudo em feudo, de região em região transmutou-se e misturou-se (BULEA E BRONCKART, 2017). As línguas continuam se misturando e se transmutando, agora também no espaço-tempo digital. Existem muitos textos escritos no que está se chamando de Chinenglish, uma mistura de mandarim e inglês, similar ao conhecido “portunhol”. Então cabe ao tradutor lidar com essa dinamicidade das composições linguageiras.

Os dicionários contêm os significados sedimentados e oficializados dos termos da língua, mas o sentido que um termo assume no texto – na língua em uso – tende a ser amplificado, modificado, ou mesmo especificado para um leitor imaginado pelo autor. O tradutor é então esse embaixador semiótico, lidando com as situações comunicativas mais inesperadas. Ele tem de compreender o que chamamos de propósito comunicativo do autor e interpretá-lo para o ambiente linguístico do leitor na língua-alvo (ou da comunidade-alvo).

O termo embaixador semiótico também se deve pelo fato de a multimodalidade ter invadido o mundo dos textos e por conseguinte o mundo dos tradutores. Imagens, sons, bits, gestos, palavras, cores e tudo mais que possa gerar um sistema de códigos ou de significação estão hoje misturados, principalmente nos suportes e ambientes digitais. A chamada tradução intersemiótica, aquela que se faz quando um livro é traduzido para a linguagem cinematográfica, ou mesmo quando uma obra autobiográfica como Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus, é convertida em peça teatral[1]. O dito diálogo interartes é hoje o lugar de convergência do olhar e dos novos desafios do tradutor.

Além do propósito comunicativo e da mistura modal, outro desafio do tradutor consiste na interação entre as línguas que moldam de certa forma a expressividade das mensagens. Os princípios de economia linguística, por exemplo, podem variar entre as línguas e é preciso estar muito atento e ser severo consigo mesmo, quando se trata disso. Não é só o fato de ser fiel à mensagem do autor, mas ser fiel a ambas as línguas, a língua de partida e a língua de chegada. Por exemplo, ao traduzir qualquer obra do inglês para o português é preciso estar muito atento ao sistema de omissões. A língua inglesa dificilmente permite uma oração com o sujeito oculto. Entretanto, na língua portuguesa, o sujeito fica normalmente implícito quando se trata de uma cadeia de ações da mesma personagem.

Podemos ver a seguir o exemplo retirado da nossa recente tradução do clássico 1984, de George Orwell (prestes a ser publicada pela coleção Eu Leio, da Ática):

“He turned over towards the light and lay gazing into the glass paperweight.[…] He had the feeling that he could get inside it, and that in fact he was inside it”

“Ele se virou em direção à luz e ficou deitado, admirando o peso de papel de vidro. […] Sentia que podia estar dentro dele, e que de fato estava dentro dele.”

É possível perceber a omissão do pronome “ele” (he) em três ocasiões das quatro em que aparece no original. Se refletirmos sobre a língua francesa veremos que a economia acontece nos mecanismos de substituição dos objetos direto e indireto das orações, por exemplo: Je n’ai pas d’argent, mais ma mère en a. “Eu não tenho dinheiro, mas minha mãe tem.” Não é apenas a existência da estrutura que importa, mas a sua frequência de uso.

Não poderia deixar de mencionar os desafios de caráter editorial ou da preparação e continuidade de um texto. Quando se traduz, por exemplo, obras volumosas como romances ou ensaios, devemos atentar para continuidade de escolhas. Às vezes o tradutor opta por utilizar o nome original de uma localidade ou ponto geográfico, outras vezes, opta por traduzir esse ponto. É preciso verificar ao longo de toda a obra se houve uma continuidade nas escolhas de tradução. A chamada memória de tradução, é registrada pelo tradutor por meio de ferramentas eletrônicas auxilia no enfrentamento a esse obstáculo e permite o trabalho colaborativo dos tradutores.

Nomeamos o tradutor de embaixador semiótico, e todo membro de corpo diplomático se destaca pelo rigor ético. Existem vários códigos de ética e de conduta que guiam a profissão, alguns nacionais, outros internacionais e outros até setoriais. Colocamos nas referências acessos aos códigos de ética do SINTRA (Sindicato dos Tradutores) e da FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos). A confidencialidade, o rigor e a honestidade acadêmica constituem o coração da maioria destes códigos e nós acreditamos que os profissionais da tradução se esmeram no seguimento destes princípios. A todos nós, tradutores, as mais sinceras homenagens.

Referências

BRONCKART, Jean-Paul, BULEA BRONCKART, Ecaterina. O que de mais natural que o plurilinguismo ?. In: J.-P. Bronckart & E. Bulea Bronckart (Ed.). As unidades semióticas em ação. Estudos linguísticos e didáticos na perspectiva do interacionismo sociodiscursivo. Campinas: Mercado de Letras, 2017. p. 67-89. https://archive-ouverte.unige.ch/unige:109185

Código de Ética – FENEIS – Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos e o Regulamento para Atuação como Tradutor e Intérprete de Língua de Sinais da FENEIS/RS. Disponível em: <<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/tradutorlibras.pdf>> Acesso em: 20 set. 2021. 

Código de Ética – SINTRA (Sindicato Nacional dos Tradutores). Acesso em 17/05/2018: Disponível em: << http://www.tradulex.com/Regles/SintraEt.htm>> Acesso em: 20 set. 2021.

ESQUEDA, Marileide Dias, SILVA Igor A. Lourenço & STUPIELLO. Érika N. de Andrade. Examinando o uso dos sistemas de memória de tradução na sala de aula de tradução. Cad. Trad. v. 37 (3), Sep-Dec 2017 pp 160-184.  Disponível em: <://doi.org/10.5007/2175-7968.2017v37n3p160> Acesso em: 20 set. 2021.

PYM, A. What technology does to translating. The International Journal for Translation and Interpreting Research, v. 3, n. 1, 2011 pp. 1-9. Disponível em: <http://www.trans-int.org/index.php/transint/article/view/121/81>. Acesso em: 20 set. 2021.


[1] Adaptação realizada por Edy Lima e publicada pela Ática.

Fabio D. V. Carneiro

Fábio Delano V. Carneiro é poeta, tradutor, professor de línguas e defensor dos direitos das crianças e dos adolescentes. Mestre e Doutor em Linguística, com estágio doutoral na Universidade de Genebra. Professor da UNI7 e da UFC e Supervisor do Colégio 7 de Setembro em Fortaleza (CE). Autor de Aliterações (2019). Está traduzindo o romance 1984de George Orwell para a Ática.

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