Para (re)ler Machado de Assis

Por Alexandre Azevedo - 02 jul 2020 - 7 min

Quem lê Machado de Assis (usando aqui de uma metonímia) não lê Machado de Assis, mas quem relê Machado de Assis, lê Machado de Assis. Essa minha afirmação pode parecer um tanto estranha, mas, para mim, é a mais pura verdade. Romances e contos do nosso “Bruxo do Cosme Velho” (assim magistralmente chamado por Carlos Drummond de Andrade) não devem ser lidos apenas uma vez, mas relidos e, se possível, várias vezes. Quem lê uma única vez os romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro ou os contos A cartomante e A causa secreta, por exemplo, jamais poderia dizer que é um(a) leitor(a) machadiano(a).

Isso porque não vai conseguir captar muito – nem mesmo o mínimo necessário, para ser mais exato – do que ele propôs passar de sua pena, cuja tinta é uma mistura de seriedade com galhofa. O universo machadiano é complexo. Não digo a linguagem, já que ela é fácil de ser compreendida, nada muito diferente da usada pelos escritores nossos contemporâneos. Já o conteúdo, esse é de uma complexidade de deixar psiquiatras e psicólogos boquiabertos, analistas e terapeutas embasbacados.

Quem diria que um escritor que cursou até o quarto ano primário, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira, enteado de uma doceira, nascido na primeira metade do século XIX pudesse chegar ao degrau mais alto de nossa literatura? Machado de Assis era gênio.

Voltando à complexidade de sua prosa, como compreendê-la? Vocês sabiam (peço licença aqui para usar da metalinguagem, a conversa com o leitor, uma das várias características do Machado) que Machado de Assis pouca importância deu ao enredo de suas obras? Ele o relegou a um segundo plano, dando maior importância ao personagem. Já repararam nos títulos de suas obras? Muitas delas têm o indivíduo como referência, assim é em Memórias póstumas de Brás Cubas; Dom Casmurro; Quincas Borba; Esaú e Jacó; A Cartomante; O alienista; O enfermeiro… Diferentemente dos autores naturalistas (Machado era realista) que se preocuparam com a coletividade, analisando-a de maneira patológica, como se fossem cientistas – O cortiço; Casa de pensão, de Aluísio Azevedo e O ateneu, de Raul Pompeia –, Machado de Assis analisou o indivíduo, psicologicamente. Mas o que significa isso? Significa que o leitor passa a ser o analista e, o personagem, o analisado.

Em várias sessões, quer dizer, em várias leituras o leitor, sentado, confortavelmente, em sua poltrona, vai, aos poucos, conhecendo a personalidade do analisado, isto é, do personagem. Mas a genialidade de Machado de Assis não para por aí. Mestre da ironia, do humor velado, o escritor vai desvendando e desvelando a alma do personagem, despindo-a na presença do atento leitor. Este, por sua vez, não se cansa (talvez tal complexidade poderia desmentir a minha afirmação), já que os capítulos, genialmente construídos, não são longos, pelo contrário, são curtíssimos, às vezes, com pouquíssimas palavras ou mesmo sem palavra alguma, mas que dizem muita coisa.

Dentre outros, dois autores em especial (um romancista, outro filósofo) marcaram profundamente a trajetória literária de Machado: Manuel Antônio de Almeida, autor das impagáveis Memórias de um sargento de milícias, e Arthur Schopenhauer, teórico alemão do niilismo. Do primeiro, o humor, a ironia e a metalinguagem, já citadas por mim anteriormente; do segundo, o pessimismo, quatro marcas indeléveis da prosa machadiana.

Vale aqui lembrar que Machado, com os seus ainda dezesseis anos, fora aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional, a antiga Imprensa-régia, cujo chefe era ninguém mais, ninguém menos que Manuel Antônio de Almeida. Autodidata, Machado de Assis aprendeu alemão para ler Schopenhauer no original, seu filósofo de cabeceira. Personagens desequilibrados, loucos, obcecados vão desfilando na frente do leitor, como Brás Cubas, um poço de defeitos, o mais bem construído personagem masculino de nossa literatura; como a dissimulada Capitu, com os seus olhos de ressaca, enigmática como jamais houve outra em nossas letras.

Para se ter uma ideia do que eu estou falando, se pegarmos a galeria dos grandes personagens de Machado, como Brás, Virgília, Lobo Neves, D. Plácida, Quincas Borba, Rubião, Sofia, Cristiano, Camilo, Procópio, Dr. Simão Bacamarte, Paulo, Pedro, Flora, Marcela e tantos outros, só encontraremos um, um único personagem equilibrado, consciente e confiável, o conselheiro Aires, tanto é assim que este personagem foi o escolhido para narrar a obra Memorial de Aires, publicada justamente em 1908, ano da morte do autor, em que o assunto central é a vida do casal Aguiar e Do Carmo, os alter ego de Machado de Assis e de Carolina Novaes, sua companheira de uma vida inteira.

Certa vez, Antonio Cândido, um dos maiores críticos literários do século XX disse que a literatura brasileira é uma das mais pobres e fracas se comparada às grandes, mas é a que temos e por isso só devemos amá-la. Ele até pode estar certo em seu comentário, mas uma coisa também é certa: não é toda literatura que tem em seu quadro um Machado de Assis… Portanto, é preciso conhecê-lo e para isso é necessário não só lê-lo, mas relê-lo, sempre.

Conheça a seguir alguns títulos do catálogo SOMOS de e sobre Machado de Assis:

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

No romance, um defunto dialoga com o leitor e conta sua vida. Abusando da ironia, Brás Cubas traça um perfil impiedoso de si próprio e das pessoas com quem conviveu. Mais que isso, faz um retrato sarcástico da sociedade de seu tempo.

Memorial de Aires, de Machado de Assis

Memorial de Aires, de Machado de Assis

Sexagenário, ex-diplomata aposentado, o conselheiro Aires faz um relato do cotidiano na Corte carioca dos anos de 1888 e 1889. Registrando reflexões sobre fatos e pessoas com as quais conviveu, tece impressões sobre o amor desinteressado, a fidelidade de sentimentos e a espontaneidade da amizade. Derradeira narrativa de um dos mestres da literatura brasileira, este livro apresenta uma reflexão de Machado de Assis sobre a própria obra, revelando a sólida consistência de seu estilo irônico e a atualidade de sua visão de mundo.

O espelho e outros contos, de Machado de Assis

O espelho e outros contos, de Machado de Assis

Estes contos concentram aspectos da visão de mundo machadiana e sugerem uma reflexão sobre suas bases filosóficas. O livro traz ainda textos sobre os filósofos e as ideias que influenciaram Machado, possibilitando uma compreensão mais profunda da obra do escritor.

O alienista (coleção Clássicos Brasileiros em HQ), de Luiz Antonio Aguiar sobre história de Machado de Assis

O alienista (coleção Clássicos Brasileiros em HQ), de Luiz Antonio Aguiar sobre história de Machado de Assis

O doutor Simão Bacamarte funda um hospício na pequena Itaguaí. Mas suas ideias sobre loucura são tão inflexíveis que ele interna a cidade inteira. Uma das mais irônicas e sombrias histórias de Machado de Assis.

Este livro possui Guia do Professor.

O menino e o bruxo, de Moacyr Scliar

O menino e o bruxo, de Moacyr Scliar

No Rio de Janeiro do século XIX, Joaquim Maria Machado de Assis acorda de um sonho em que é um escritor famoso. Mas a realidade do menino é bem diferente: tímido, mulato, pobre e gago, ele tenta vender doces. Porém, um acontecimento mágico vai mudar sua vida.

Machado de Assis para principiantes, de Marcos Bagno

Uma imagem contendo texto, livro

Descrição gerada automaticamente

Para introduzir o jovem leitor na obra de Machado, este livro reúne trechos de romances e crônicas, além de dez contos integrais.

Foto de capa: Enterro de Machado de Assis, 1908. Acervo da Academia Brasileira de Letras.

Para (re)ler Machado de Assis

Alexandre Azevedo

Alexandre Azevedo é professor de literatura e escritor. Autor de mais de 120 obras. Já publicou, entre outros, Que azar, Godofredo! (Atual), O vendedor de queijos e outra crônicas (Atual), Três casamentos (Atual), Poeminhas fenomenais (Atual), O menino que contava estrelas (Atual), A lua e a bola (Formato) e A última flor de abril (Saraiva).

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