Os vários lados da poesia

Por Leo Cunha - 21 out 2020 - 8 min

Para a criança, brincar com as palavras é um ato natural e prazeroso. Enquanto aprende a falar, ela experimenta a língua, testa, exercita, dribla, descobre caminhos e inventa saídas. Ao longo desse processo, ela acaba conhecendo, inevitavelmente, uma série de textos que, intencionalmente, lidam de forma criativa – e não meramente utilitária – com a palavra. É o caso das parlendas, das lenga-lengas, das cantigas de roda e de ninar. Depois (ou junto) vêm as adivinhas, os trava-línguas, os trocadilhos e outros exercícios poéticos. Sim, poéticos. Nenhum deles lida com a língua, e com a palavra, de modo puramente utilitário ou objetivo. Sempre dizem algo mais do que está evidente, jogam com as sonoridades, com os sentidos, com a plasticidade das letras, sílabas e palavras.

Apesar disso, ainda é comum escutarmos pessoas dizendo que as crianças não gostam de poesia, ou que é difícil “trabalhar” com poesia nas escolas. Discordo totalmente. Em meus quase trinta anos de carreira como escritor de literatura infantojuvenil, já visitei centenas de escolas e, ali, testemunhei atividades maravilhosas pensadas e desenvolvidas a partir (ou em torno) dos meus livros de poesia, como Poemas lambuzados e Poemas avoados, que a SOMOS Educação reuniu recentemente em um só volume, chamado A poesia se faz num pescar de olhos (selo Formato, com ilustrações de Andrea Ebert). Ou atividades realizadas com base em poemas de livros que publiquei por outras editoras, como Clave de Lua (Ed. Paulinas), Piolho na Rapunzel (Ed. Projeto), Cantigamente (Ed. Nova Fronteira), Só de brincadeira (Ed. Positivo), entre outros.

Quando ouço essa queixa sobre a dificuldade de se “trabalhar” com poesia, costumo sugerir: não trabalhe, curta! A leitura de poesia – especialmente a primeira leitura – deve ser sobretudo de fruição. A criança (e o professor também, claro) precisa estar livre para saborear versos, ritmos, rimas, jogos de palavra e sentidos. A poesia estimula a imaginação, a fantasia, a criatividade e todo tipo de brincadeira com a linguagem.  

Se o professor quiser se aprofundar um pouco mais, pode – de preferência a partir da segunda leitura – explorar as diferentes vertentes da poesia para crianças. Costumo dizer que a poesia é uma espécie de cubo mágico, com vários lados coloridos. Porém, ao contrário do brinquedo, cujo objetivo é separar as seis cores – uma em cada lado –, na poesia o bacana é misturar essas cores nas várias combinações possíveis.

De um lado temos a invenção de sentidos, a fuga proposital ao sentido original das palavras. Pelas figuras de linguagem, uma palavra poética vai dizer outras coisas, para além daquilo que prevê o dicionário. Desse modo, os versos promovem um olhar de descoberta, como se estivéssemos vendo pela primeira vez aquele objeto, aquela pessoa, aquela ação. A poesia inverte (e subverte) as expectativas e surpreende quem lê (muitas vezes, até mesmo quem escreve). É o que busquei explorar, por exemplo, no poema “Saudade”, do livro A poesia se faz num pescar de olhos:

SAUDADE

eu pensava que à noite

o sol ia dormir

que o sol ia pra casa

que ia lá pra China

que o sol virava lua

que acabava a pilha

que punha capa preta

que a montanha engolia

que o sol também ficava

com saudade de mim.

Um outro lado é o do lirismo – aquele que muitos identificam como sendo praticamente sinônimo de poesia. É quando os versos mergulham fundo nas emoções, nos sentimentos, na vivência, nas memórias afetivas, e promovem uma espécie de transbordamento da alma.

Um terceiro lado está na própria brincadeira com o signo – as letras, as sílabas, os sinais gráficos, tudo o que compõe a língua – e a partir daí cria jogos de palavra. Para citar mais exemplo do meu livro da Formato, temos um poema que se aventura nesse caminho:

PALAVRÃO

Você tem que ser mágico,

você tem que ter ímpeto,

para ler, ler rápido,

para ler, ler lépido:

paralelepípedo!

O que é um paralelepípedo senão um belo de um palavrão?! Com base nesse poema, já podemos puxar um outro lado desse cubo colorido: a musicalidade. Ela está nas rimas, claro, mas também no ritmo, na métrica, nos silêncios, nas repetições de palavras, de sons de vogais (as assonâncias) e consoantes (as aliterações).

Poderíamos falar ainda em outros aspectos do jogo poético: a intertextualidade (quando o poeta propõe um diálogo, menos ou mais evidente, entre o texto e outros poemas ou mesmo outros textos artísticos), a visualidade (tanto a poesia visual, propriamente dita, quanto o diálogo do poema com as imagens).

Sempre vale lembrar, como apontei lá no início deste texto, que a poesia não tenta – nem quer, nem precisa – separar os vários lados. Um mesmo poema pode ter doses de lirismo, de musicalidade e de intertextualidade, por exemplo.

Para o professor, conhecer essas amplas possibilidades da poesia vai ajudá-lo a compor um acervo bem variado, composto de vários autores (de épocas e origens diferentes), com poemas mais divertidos e mais sérios, em versos livres ou formatos mais tradicionais (quadrinha, haicai, soneto, cordel, etc.), com ou sem rima, com tamanhos e temas diversificados.

Se for necessária alguma atividade avaliativa – sempre depois da leitura por prazer, da qual não podemos abrir mão – o professor deve evitar provas ou questionários fechados, que se preocupem com respostas únicas, com certo e errado, verdadeiro e falso. A poesia, forma de arte tão livre, não combina muito com esse tipo de avaliação. Ela deixa brechas para leituras diferentes e mesmo divergentes, a depender do repertório de cada leitor, sua história de vida, suas preferências. Não se deve esperar que todos os leitores – em uma turma, por exemplo – interpretem o poema da mesma maneira ou percebam as mesmas sutilezas e entrelinhas.

Mais rico será propor atividades de criação e recriação poética, ou que estimulem a criança a ler em voz alta, sozinha ou em grupo, ou ainda que explorem o diálogo da poesia com outras artes: a música, o teatro, as artes visuais.

Para concluir, vale ressaltar que a produção poética para crianças – embora ainda encontre resistência em algumas escolas, editoras e livrarias – está bem representada nos programas de promoção da leitura, como PNBE (Programa Nacional de Bibliotecas Escolares), PNAIC (Plano Nacional de Alfabetização na Idade Certa) e PNLD Literário (Plano Nacional do Livro Didático e Literário). Em outras palavras, as bibliotecas escolares – notadamente as situadas em escolas públicas – dispõem, via de regra, de um bom acervo de obras poéticas, à disposição de quem deseja se encantar com a beleza, a surpresa, o assombro e a diversão que a poesia nos oferece.

Conheça a seguir algumas opções do catálogo de poesia da Somos

A poesia se faz num pescar de olhos, de Leo Cunha

A poesia se faz num pescar de olhos é um livro para quem gosta de viajar com as palavras, brincar com elas e ficar ligado, plugado, conectado com as coisas do mundo e do coração. A obra traz poemas inéditos e outros que já tinham sido publicados nas obras Poemas lambuzados (de 1999) e Poemas avoados (de 2002) pela Editora Saraiva. Tudo com uma nova roupagem e as lindas ilustrações da Andrea Ebert.

Poemas para brincar, de José Paulo Paes

Um clássico da poesia infantil brasileira em que José Paulo Paes propõe a seus leitores brincar com a língua portuguesa. Os poemas apresentam jogos de palavras e até um abecedário com significados inusitados, que diverte, instiga a criatividade das crianças e ainda faz pensar.

Poemas miudinhos para brincar e ritmar, de Neusa Sorrenti

A música e a poesia estão em toda parte. Elementos da natureza, cenas do cotidiano e mesmo situações absurdas vêm à tona com os versos líricos e singelos de Neusa Sorrenti. São textos breves e bem humorados para cantar e musicar, mas, acima de tudo, para se divertir e emocionar. Cada poema traz uma sugestão de acompanhamento musical, com instruções passo a passo e ilustrações detalhadas para a confecção de instrumentos a partir de sucata ou materiais fáceis de serem encontrados. Um ótimo meio para introduzir as crianças no universo musical.

Bichário, de Otoniel S. Pereira

O que o boi, o cavalo, a borboleta, a abelha, o peixe, a andorinha, o cachorro, o gato e a centopeia têm em comum? Se você respondeu poesia, acertou! Com uma deliciosa brincadeira com o ritmo, as palavras, a rima e a forma, Otoniel S. Pereira faz um diário de bichos, um Bichário, onde vai anotando suas impressões poéticas sobre muitos animais.

Rima ou combina, de Marta Lagarta

Poemas com estrofes e versos curtos, com muito ritmo e rima, divertem, informam, incentivam a reflexão sobre aspectos de animais, frutas…

Leo Cunha

Leo Cunha publicou mais de 60 livros para crianças e jovens, além de crônicas e teatro. Seus livros já receberam os principais prêmios da literatura infantil brasileira, como Jabuti, Nestlé, FNLIJ, Biblioteca Nacional e João-de-Barro, além de algumas distinções internacionais, como a Lista de Honra do IBBY e o White Ravens. É doutor em Artes e mestre em Ciência da Informação, ambos pela UFMG. Além de escritor e tradutor, é professor universitário desde 1997.

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