Onde todos viviam dormindo

Por Leda Cartum - 27 nov 2019 - 6 min

Em uma carta que escreveu para um grande amigo que ela nunca mais veria, a pensadora francesa Simone Weil diz que “se por acaso você pensar em mim de vez em quando, que seja como pensar num livro que foi lido na sua infância”. Por isso, não é da Simone Weil que quero falar aqui; mas sim, como ela mesma pede, dos livros lidos na infância, e de como é pensar neles.

Vejo então as páginas, as imagens que surgem quando falo de livros da infância. Uma caverna onde os cristais são sonhos esquecidos, ou um menino que junta ingredientes na casa da avó para fazer um remédio mágico, ou um pântano onde só afunda quem entristece, ou uma bruxa trancada no armário que só aparece ao ouvir uma musiquinha cantada até o final. São lembranças que ficaram guardadas num ponto engraçado do tempo: quando penso num livro que li quando era pequena, não é exatamente porque volto a ele, mas na verdade porque aquelas imagens chegam até mim, partindo de um nível muito profundo, a que eu não costumo ter acesso. Ilustrações ou frases que chegam no meio do dia, sem explicação, cobertas por uma névoa espessa do passado – mas que nem por isso contaminam ou fazem pesar o ar ao meu redor. E pouco depois somem de novo: não sinto necessidade de me deter sobre elas, e parece que elas também não sentem necessidade de se manter na minha memória. Lembro com afeto, sem apego. Com simpatia, sem nostalgia. Lembro mais dessas imagens quando estou com sono – e por isso normalmente nem percebo que estou lembrando.

É talvez também por causa dessas memórias meio sonolentas que às vezes abro a porta de casa, chegando de um dia longo na rua, e o que me vem à cabeça é o refrão: “… uma casa sonolenta, onde todos viviam dormindo”. Às vezes também pontuo mentalmente algumas frases que digo com essas palavras. Porque qualquer frase que puder ser finalizada com “numa casa sonolenta, onde todos viviam dormindo” se torna uma frase melhor. Ainda mais para quem já conheceu tão bem essa casa: onde há uma cama com uma avó deitada sob um menino deitado sob um cachorro deitado sob um gato deitado sob um rato deitado sob uma pulga.

A casa sonolenta, de Audrey Wood, ilustrado por Don Wood – que repete esse mesmo refrão a cada uma de suas páginas –, é um livro que li muito, muitas e muitas vezes, quando era criança. Tantas que essa leitura era um pouco como quando a gente repete uma palavra até ela perder o sentido, e se tornar um monte de sons gostosos de dizer, que fazem cócegas na língua: a casa sonolenta, a cama aconchegante, a avó roncando, o menino sonhando, o cachorro cochilando, o gato ressonando, o rato dormitando, a pulga acordada – tudo ia virando um monte de borrões, manchas lindas de tons azuis amarelados.

É um pouco difícil pensar que esse livro foi feito por alguém. Que foi escrito e ilustrado por alguém. Porque ele está entre aquelas coisas da infância que parecem sempre ter existido – como as canções, como a voz dos nossos pais ou os quadros pendurados na parede. Uma avó que sempre esteve dormindo, desde os princípios dos tempos; e uma pulga que sempre esteve desperta, que sempre veio picar o rato, que sempre assustou o gato, que sempre arranhou o cachorro, que sempre caiu sobre o menino, que sempre deu um susto na avó, que sempre quebrou a cama, nessa casa sonolenta onde já ninguém mais estava dormindo. São coisas que continuam acontecendo ali, ininterruptamente, naquela fronteira do sono em que nós ainda não dormimos, mas onde estamos tão sonolentos que já não somos mais adultos.

Acho que todas as casas de quando éramos crianças, assim como todos os livros que foram lidos por nós crianças, são, de uma forma ou de outra, casas sonolentas, livros sonolentos. Porque, quando viram memória, essas coisas ficam esparramadas por entre os sonhos, assim como toda a infância: um período da vida que ficou cheio desse tom azulado. O sono do que se tornou a infância se parece com uma nuvem que entra pela janela e cobre todos os cômodos, os móveis e as pessoas de uma camada fina e pesada, que puxa tudo um pouco mais para baixo.

É essa a atmosfera de A casa sonolenta, um livro que já nasceu antigo. E foi envolvida por ela que eu abri a sua continuação – A lua cheia na casa sonolenta. Também de autoria de Audrey e Don Wood, nesse livro o que acontece é exatamente o contrário: a casa sonolenta está, nessa noite sob a luz da lua cheia, completamente desperta. Ninguém consegue dormir. Na cama bem larga, a avó agora está acordada; o menino está agitado; o cachorro, pirado; o gato, assanhado; e o rato, assustado. Descobri agora, adulta, que nem mesmo a casa sonolenta está sempre adormecida. Descobri que nas noites de lua cheia nem mesmo a casa sonolenta consegue dormir. E descobri que a casa sonolenta, mesmo que localizada nesse nível distante da infância em que tudo está dormindo, pode às vezes se agitar por dentro e acordar todo mundo, voltar a existir e trazer até novidades – tudo está também desperto. Até que um grilo tranquilo venha cantar uma canção para acalmar a todos.

Conheça agora os livros de Audrey e Don Wood mencionados por Leda Cartum

A casa sonolenta

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Na casa sonolenta, todos estão sempre dormindo. Será que essa calmaria acaba algum dia? Uma história dorminhoca e aconchegante, que se tornou um clássico da literatura infantil.

 

A lua cheia na casa sonolenta

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A casa sonolenta, tem sido adorado por famílias ao longo de gerações. Agora, A lua cheia na casa sonolenta, sua adorável continuação, vai se tornar uma das histórias de ninar favoritas de muita gente, perfeito para ser lido quando o luar, de tão intenso, afugenta o sono.

Imagem de capa: Don Wood

Leda Cartum

Leda Cartum é escritora, roteirista e tradutora. Autora dos livros As horas do dia – pequeno dicionário calendário (7Letras, 2012), O porto (Iluminuras, 2016) e Bruno Schulz conduz um cavalo (Relicário, 2018).

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