O Teatro Atual de Gil Vicente

Por Alexandre Azevedo - 06 jan 2021 - 6 min

Não existe em nossa língua teatrólogo mais antigo e mais atual que Gil Vicente. Nasceu, provavelmente, na cidade portuguesa de Guimarães, berço de inúmeros joalheiros ou ourives – Gil Vicente teria sido também um cultor da arte da ourivesaria – e uma das mais importantes cidades históricas daquele país. Seu nascimento data de 1465 para a maioria dos seus biógrafos e estudiosos do teatro vicentino, mas foi no ano de 1502 que Gil Vicente entrou, literalmente, em cena.

Naquele início de século, nascia o filho de Dom Manuel, o Venturoso, e de Dona Maria de Aragão, o futuro Dom João III. Com a licença do rei, Gil Vicente, vestido de vaqueiro, entrou na Câmara Real e encenou a sua primeira peça teatral, Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação. A peça encantou os reis de tal maneira que os mesmos pediram a Gil Vicente que a encenasse nas matinas de Natal, dias santos e páscoa. Empolgado, o autor/ator não perdeu tempo para criar outras tantas peças, muitas de muito sucesso. E foi justamente o seu sucesso meteórico que acabou por incomodar os eruditos cortesãos da época. Isso porque Gil Vicente não era um deles, pelo contrário, era um popular, um homem do povo. Como então acreditar que um plebeu pudesse ser um intelectual?

Improvável para época, mas Gil Vicente o era. Culto e de formação teológica, o teatrólogo teve que provar àqueles eruditos que não era somente o ator, pois todos ali o viam em cena, mas também o autor, o criador daquelas peças que criticavam e satirizavam o comportamento de uma sociedade em decadência. Como provar então que o autor era ele, e não outro alguém que se passava por ele? A saída era só uma, não havendo qualquer outra alternativa: deram a ele um mote e, em cima dele, teria ele que escrever uma peça de teatro. Os eruditos não fizeram outra coisa se não cutucar a onça com vara curta.

O mote era Mais quero um asno que me carregue, que um cavalo que me derrube. Gil Vicente não fugiu da raia, ou melhor, não fugiu de cena, e escreveu uma de suas mais populares peças, a Farsa de Inês Pereira. Provada a autoria das peças, Gil Vicente teve sossego merecido para escrever mais, possivelmente 44 peças, já que é este o número que aparece na compilação feita por seu filho, Luís Vicente, após a morte do pai.

Nesta antologia, Luís Vicente classificou as peças em autos e mistérios (aquelas com teor religioso), e farsas, comédias e tragicomédias (as consideradas profanas). Explorando o teatro popular, não seguindo, portanto, o teatro tradicional, o chamado aristotélico, com as suas três condições básicas – tempo / espaço / ação –, Gil Vicente é, sem dúvida alguma, o primeiro escritor desobediente da língua portuguesa, fazendo parte de um seleto grupo de autores como Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Manoel de Barros, citando apenas esses três notáveis brasileiros. Usando versos redondilhos, principalmente os maiores (sete sílabas poéticas), os personagens recitavam suas falas rimadas e musicais, o que facilitava a memorização do texto. Como exemplo, podemos citar os redondilhos, nestas falas do Anjo, retiradas do Auto da Barca da Glória:

A /Vir/gem/ No/ssa /Se/nho/ra

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Se/rá a/ su/a /sal/va/do/ra

1          2        3      4       5       6     7

Ne/ssa ho/ra /de /su/a /mor/te,

1              2          3        4        5       6        7

De /to/das,/ San/ta /Dou/to/ra!

1        2         3           4          5          6         7

Gil Vicente, além de teatrólogo, era também poeta, portanto, um poeta-dramático. Expoente do Humanismo português, período de transição entre a literatura trovadoresca e a renascentista, Gil Vicente pisava com um pé na idade média e com outro na idade moderna. Em suma, o escritor viveu o final do Teocentrismo e o começo do Antropocentrismo. Como citei anteriormente, sua formação era teológica, Gil Vicente era um católico fervoroso, um cristão de primeira ordem, que não via com bons olhos o comportamento nada convencional da sociedade de sua época.

Preocupado com a salvação das almas, desfilava diante de si um amontoado de gente torta e pouco dada a virtudes da época, como juízes e advogados corruptos, médicos incompetentes, padres namoradores, alcoviteiras, cafetinas e prostitutas, comerciantes desonestos, agiotas, judeus, nobres exploradores, prepotentes, vaidosos e ociosos, mulheres interesseiras, fúteis e casadoiras, parvos, judeus casamenteiros, velhos ridículos, mulheres adúlteras, ambiciosos sem limites, camponeses e marinheiros, nem mesmo os do alto escalão, tanto do clero como da nobreza, escaparam de sua pena crítica…

Nasciam, assim, seus personagens alegóricos, que simbolizavam instituições, classes, profissões, grupos, etc. Seguindo o famoso ditado em latim, ridendo castigat mores, isto é, “rindo, castigam-se os costumes”, Gil Vicente procurava conscientizar as pessoas de seus sucessivos erros, com a única intenção de reaproximá-las de Deus. No Brasil, Gil Vicente é ainda pouco explorado, isso por conta de sua linguagem, que assusta até mesmo aqueles que se propõem voluntariamente a conhecer um pouco de seu universo teatral. Apesar de uma figura fácil nas provas dos diversos vestibulares do nosso país, o pai do teatro português está ainda muito distante de ser um autor popular entre os estudantes, mas o fato é que esse português não poupou sua pena cômica e mordaz para denunciar o que era preciso. Gil Vicente teria morrido em 1536, ano de sua última peça de teatro, Floresta de Enganos.Depois dela, nada mais foi escrito.

Bibliografia

Vicente, Gil. Auto da Embarcação da Glória, org. Prof. Paulo Quintela, Coimbra: Coimbra Editora, s/d.

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Alexandre Azevedo

Alexandre Azevedo é professor de literatura e escritor. Autor de mais de 120 obras. Já publicou, entre outros, Que azar, Godofredo! (Atual), O vendedor de queijos e outra crônicas (Atual), Três casamentos (Atual), Poeminhas fenomenais (Atual), O menino que contava estrelas (Atual), A lua e a bola (Formato) e A última flor de abril (Saraiva).

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