O poder de transformar

Por Renata Ribeiro de Moraes - 15 maio 2019 - 6 min

A literatura amplia o repertório cultural e emocional e potencializa o desenvolvimento integral do ser.

A história começa com o diálogo entre uma agulha e um novelo de linha. Eles discutem sobre qual função tem mais valor no ato de costurar um vestido: a da agulha, que “fura o pano”, ou a da linha, que “prende um pedaço a outro”. Ao longo da narrativa, um duelo de argumentos entre os objetos é travado até que o vestido fica pronto e a realidade se impõe. Enquanto a agulha volta para a caixinha de costura, a linha “vai ao baile no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância”. Melancólico, um alfinete encerra a conversa com a triste lição: “Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico”.

Se, ao ler este resumo do conto “Um Apólogo”, de Machado de Assis, você se identificou – mesmo que por um segundo – com a agulha, com o novelo de linha ou com o alfinete; ou ainda depreendeu da história aspectos da realidade e ponderou sobre eles, acaba de experimentar uma das facetas mais poderosas da literatura: a reflexão por meio de situações imaginárias. Uma característica que, sozinha, já tornaria a arte literária essencial à formação integral dos seres. Mas vai além. A literatura proporciona também a ampliação do repertório cultural, fomentando um estudo sobre nossa identidade e de outros povos, promove autoconhecimento e até nos transforma em relação a conceitos, sensações e emoções que antes desconhecíamos.

A literatura proporciona também a ampliação do repertório cultural, fomentando um estudo sobre nossa identidade e de outros povos.

Por esse motivo, recomenda-se que o contato com essa forma de arte comece na primeira infância e siga com atenção especial nos primeiros anos de letramento, pensando no contexto escolar. Um processo que se inicia em casa e continua na escola. Não demanda muito esforço aproximar as crianças dos livros, já que elas amam as cores, desenhos e texturas deles. Mas é preciso incentivar o contato, estimular a curiosidade e os sentidos através da visão, tato, olfato e apresentar novas e surpreendentes possibilidades aos leitores. Um universo quase ilimitado que depende, em grande medida, do desejo e do olhar atento do professor e/ou do responsável.

 

Ponto de partida

Para iniciar essa jornada, em se tratando de sala de aula, o docente pode investigar os interesses de seus alunos, propiciando a oralidade por meio das rodas de conversa, brincadeiras e situações do cotidiano. Os grandes temas do momento podem ser o gatilho necessário para introduzir, de acordo com a faixa etária, obras literárias que apresentem temáticas que envolvam o aluno em um clima de reflexão e observação da realidade. Abordar a biografia de autores é também outra maneira interessante de despertar a curiosidade dos leitores. Falar sobre o autor da obra, sua biografia e sobre seu legado literário que constitui a formação da nossa identidade cultural, por exemplo, são elementos extraliterários que interagem com o texto e geram pontos de conexão entre passado e presente. E é esse tipo de abordagem que torna a aprendizagem realmente significativa e atraente.

Mas, para tudo isso se concretizar, o professor/responsável também precisa desempenhar a função de leitor, além de gostar de literatura. No caso da sala de aula, se o docente quer formar um leitor literário, ele precisa ter propriedade para falar sobre o tema da obra e compartilhar reflexões sobre o que este proporciona em sua vida. Nada é mais motivador que o exemplo, especialmente quando ele vem de uma referência tão importante na vida dos alunos como o professor. Afinal, quem nunca se apaixonou por uma disciplina depois de escutar, analisar e participar, encantado, da aula de um professor altamente motivado?

Lançar mão dos recursos que a tecnologia popularizou é outra forma eficaz de trazer a literatura à realidade dos alunos/leitores. Existe uma infinidade de sites, plataformas, bibliotecas, e-books, vídeos, acervos e conteúdos audiovisuais para complementar a vivência em sala de aula. Os responsáveis podem mediar essa experiência também e participar ativamente do processo de formação dos leitores.

Se o docente quer formar um leitor literário, ele precisa ter propriedade para falar sobre o tema da obra e testemunhar sobre o que este proporciona em sua vida.

Em Literatura Como um Direito, de Antonio Candido, um dos principais críticos literários brasileiros (falecido em 2017), compara o direito à cidadania ao do acesso à literatura. Para o autor, “ela tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”. Em outras palavras, possibilita ao leitor enxergar sua realidade de modo crítico, tornando-se protagonista de sua própria história. Por isso mesmo é um direito emancipador.

 

Literatura na prática

Confira algumas práticas para inserir, cada vez mais, a literatura ao cotidiano do leitor:

  1. Elabore projetos de leituras na escola/na comunidade;
  2. Faça uma sacola para colocar livros que os alunos/leitores possam levar para casa e, assim, estimular a leitura de outros membros da família;
  3. Convide autores de obras literárias para participar de rodas de conversas com os alunos ou com a comunidade escolar;
  4. Desenvolva momentos em que o aluno/leitor possa indicar a leitura de um livro para um colega;
  5. Desenvolva trabalhos interdisciplinares, analisando, sob diversos pontos de vista, obras literárias;
  6. Incentive e realize contação de histórias e leituras mediadas;
  7. Chame pessoas da família e ou da comunidade para contar histórias a outros leitores;
  8. Faça um sarau entre professores, alunos e ou comunidade em geral;
  9. Organize uma feira de livros;
  10. Trabalhe com o aluno/leitor diferentes versões e posicionamentos para uma mesma história, como Monteiro Lobato faz em “A Cigarra e a Formiga”, texto no qual o autor dá o devido valor ao trabalho do artista (cantor) ao se referir à cigarra. Vale a (re)leitura.

 

Cada vez mais é preciso pensar em ações de desenvolvimento integral para que os cidadãos sejam mais críticos e engajados com os fatos sociais de seu entorno. É preciso também proporcionar aos indivíduos outras oportunidades de conhecimento, que convirjam para uma mudança significativa, seja pessoal ou profissional. E a literatura está aí, não só nos livros como também nos meios digitais e vem com a importante missão de formar, informar e transformar.

 

Renata Ribeiro de Moraes

Doutora em Literatura Brasileira pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), pesquisa o trabalho extraliterário do escritor João Antônio. Integra a área de literatura infantojuvenil da SOMOS Educação.

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