Nem herói, nem vilão: o anti-herói

Por Alexandre Azevedo - 23 set 2020 - 6 min

Na segunda metade do século XIX, chegou ao Brasil o romance de folhetim. De origem francesa, os folhetins, gênero a que pertencem nossos primeiros romances, eram originalmente publicados nas páginas (ou folhas, donde o nome folhetim) de jornais e revistas, em fragmentos, um pouco a cada semana, mantendo o público cativo.    

Era o auge do Romantismo brasileiro, quando os leitores se deliciavam com livros como A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, O guarani, de José de Alencar, A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, ou Inocência, do Visconde de Taunay. Desses, talvez O Guarani tenha sido o maior sucesso folhetinesco da época.

Publicado em primeira mão nas páginas de O Diário do Rio de Janeiro, os leitores se “estapeavam” para conseguir, mais tarde, O guarani em forma de livro, com todos os fragmentos reunidos em um volume. Não havia número suficiente de exemplares para saciar a fome desses leitores comovidos com o amor do índio Peri pela branca Ceci. Exibindo todas as qualidades possíveis e imagináveis, dotado de força sobrenatural, Peri, belo guerreiro goitacá, tornou-se o primeiro super-herói da literatura brasileira.

Da mesma forma que esses leitores amavam Peri, odiavam Leôncio, vilão de A escrava Isaura. Guardadas as devidas proporções, muitos leitores daquela época relacionavam-se com os romances de folhetim como hoje alguns espectadores assistem às telenovelas: estabelecendo relações de amor e ódio com os personagens da telinha. Não por acaso, certos críticos, reconhecendo afinidades entre os gêneros, referem-se às telenovelas como “folhetins eletrônicos”.

Mas, voltando ao século XIX, estava o público fisgado pela isca dos folhetins – cuja estrutura seguia determinados esquemas e fórmulas, com polarização moral entre os protagonistas e adesão às convenções do melodrama – quando, de repente, aparecem estampadas nas folhas d’A Pacotilha, suplemento literário do jornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853, as impagáveis e divertidíssimas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Essas Memórias fugiam muito da proposta do romance social oitocentista: em vez de retratar a burguesia, descortinavam o subúrbio carioca, com os seus personagens populares, suas festas e procissões, até mesmo com o jogo do bicho, prática de contraventores que, reunidos a outros “vadios”, eram perseguidos pelo temível major Vidigal, chefe de polícia.

À parte tais novidades, a obra também inovava pela linguagem coloquial, irônica, bem humorada, com direito a apartes metalinguísticos, como a “conversa” do autor/narrador com o leitor. Ironia, humor e metalinguagem, três características que fascinaram e influenciaram a prosa de Machado de Assis, que tinha as Memórias de um sargento de milícias como livro de cabeceira.

Mas talvez o traço mais inovador desse romance seja o fato de ele ser protagonizado por um personagem que não era suficientemente bom para ser herói nem mau o bastante para ser vilão.

Nem herói, nem vilão: assim é Leonardo, filho do Pataca, meirinho português e da Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa que se conheceram a bordo do navio em viagem para o Rio. “De uma pisadela e de um beliscão”, nascia o primeiro malandro de nossa literatura, nosso primeiro anti-herói.

Vivendo ao Deus-dará, sem nenhuma preocupação com o futuro, esse personagem lembrava o herói pícaro (pícaro: sagaz, velhaco, espertalhão), muito encontrado na literatura ibérica, sobretudo nas sátiras que parodiam as novelas de cavalaria, com os seus heróis de escudo, lança e armadura. Dessas paródias, Dom Quixote e Lazarillo de Tormes, são exemplos clássicos de anti-herói. O primeiro, protagonista do romance Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes; o segundo, do La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autoria desconhecida.

Certo é que o bom caráter e o mau caráter tiveram de ceder espaço na trama romanesca para o “espaçoso” sem caráter, que entrou na literatura brasileira para nela ficar. Já no século XX, outra obra célebre da nossa literatura em que vemos ressurgir a figura do anti-herói é Macunaíma, de Mario de Andrade, cujo protagonista é um índio preguiçoso e picareta, malandro e mentiroso, programaticamente distante do Peri idealizado por Alencar.

Trapaceiros e divertidos, preguiçosos e críticos do trabalho como imperativo moral, ingênuos e licenciosos, esses anti-heróis revelam aspectos do Brasil e da problemática (e sempre inconclusa) “formação” de um caráter nacional que, bem afastados das “falsificações” românticas e do esquematismo folhetinesco, continuam dando o que pensar, desafiando a percepção da nossa autoimagem e do nosso incerto destino.


Conheça a seguir edições e adaptações de algumas obras mencionadas no artigo.

Peri, um índio goitacá fiel ao nobre português D. Antônio de Mariz, apaixonou-se por Ceci, filha do fidalgo. Por causa da morte acidental de uma índia Aimoré, a tribo toda se revolta e começa a hostilizar os brancos colonizadores. A partir daí, uma série de acontecimentos coloca a vida de Ceci em risco, e Peri enfrenta muitos perigos para salvá-la da ira dos Aimorés. Neste épico de José de Alencar, temperado por amor e aventura, planos de traição e vingança desenrolam-se em cenários cinematográficos.

A linguagem popular e a vida das camadas pobres e médias são as protagonistas deste romance, que faz uma bem-humorada crônica de costumes do Brasil de dom João VI. A ironia e o deboche com que Manuel Antônio de Almeida conta as trapalhadas de Leonardo, primeiro malandro da literatura nacional, situam a obra além das características do movimento literário do período em que foi escrita, o Romantismo.

O Rio de Janeiro recebe a família real portuguesa e passa a ser a sede do Império. É nesse cenário conturbado que o leitor segue Leonardo. Esta adaptação mantém o tom irônico da obra original.

Macunaíma em quadrinhos, de Rodrigo Rosa

Da imaginação de Mário de Andrade e dos pincéis de Rodrigo Rosa nasceu o protagonista desta HQ. Nesta adaptação, o tom bem-humorado e fantástico da obra original é mantido, e a narrativa fragmentada e veloz nos leva a viajar em busca de traços da nossa identidade cultural.


Imagem de capa: Ilustração de Rodrigo Rosa para a adaptação em HQ, a cargo de Ivan Jaf, do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

Alexandre Azevedo

Alexandre Azevedo é professor de literatura e escritor. Autor de mais de 120 obras. Já publicou, entre outros, Que azar, Godofredo! (Atual), O vendedor de queijos e outra crônicas (Atual), Três casamentos (Atual), Poeminhas fenomenais (Atual), O menino que contava estrelas (Atual), A lua e a bola (Formato) e A última flor de abril (Saraiva).

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