Narrar o naufrágio

Por Ricardo Azevedo - 18 dez 2019 - 8 min

Sobre o livro História Trágico-Marítima 

Para escrever os livros Fragosas brenhas do mataréu e, anos depois, Trago na boca a memória do meu fim, tive que fazer muita pesquisa. Ambos os enredos transcorrem entre o século XVI e XVII, em pleno período do Brasil Colônia. A partir das leituras que fiz, encontrei e tentei captar uma certa mentalidade, uma outra maneira de ver a vida e o mundo.

Tentei também recuperar, pelo menos um pouco, a riquíssima linguagem usada naquela época.

Entre os muitos livros que tive o privilégio de ler, um dos mais preciosos e maravilhosos foi, sem medo de errar, História Trágico-Marítima, de autoria do português Bernardo Gomes de Brito (1688-1759), cuja primeira edição saiu em Lisboa por volta de 1735. Meu exemplar foi publicado em 1998 por Lacerda Editores/Contraponto.

Havia na época o hábito de os sobreviventes de naufrágios que sabiam ler – algo raro naquele tempo – escreverem textos relatando sua aventura, como tinha sido a viagem, o que acontecera, em que condições o navio afundara e como conseguiram se salvar. Tais relatos eram depois depositados em igrejas como forma de, por um lado, conservar o acontecimento que poderia ser útil a futuros viajantes e, de outro, fazer um agradecimento a Deus.

As narrativas dizem respeito a viagens em embarcações que partiam (ou retornavam) de Portugal rumo à Índia, ao Brasil e à África.

Pois bem, o tal Gomes de Brito teve a ótima ideia de coletar e reunir essas narrativas em um livro que se tornou um clássico da Língua Portuguesa. São treze relatos, cada um melhor que o outro.

Trago o título de um deles: “Relação sumária da viagem que fez Fernão D’ Álvares Cabral desde que partiu deste Reino por Capitão mor da Armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que se perdeu no Cabo da Boa Esperança no ano de 1554, escrita por Manoel de Mesquita Perestrello que se achou no dito naufrágio.”

No caso dessa viagem, apenas como exemplo, eram cinco naus que deveriam viajar juntas. A nau Santo Antônio pegou fogo antes de partir. Além dela iam a nau Santa Maria da Barca, a nau Santa Maria do Loreto, a nau Conceição e a nau São Bento, de cujo naufrágio temos a “relação”, ou seja, o relato feito por Manoel de Mesquita Perestrello.

Não tenho como entrar aqui em muitos detalhes, mas o livro tem um pouco de tudo: registra como foi cada viagem, da partida ao naufrágio; as condições de navegação; como era medido o tempo naquela época; o que se comia a bordo; os trabalhos que havia; as missas e festas ocorridas na nau; as condições do tempo, alternando temporais e calmarias (às vezes a nau ficava, por falta de vento, mais de 40 dias parada no mar); os acidentes e as fomes a bordo; as peripécias por que passaram os sobreviventes que conseguiram, após o naufrágio, chegar ao litoral, em geral uma praia deserta da costa africana, brasileira ou outra. É preciso dizer que muitos morreram no naufrágio e outros sobreviveram ao afundamento do navio, mas morreram na terra.

Os textos e relatos revelam também detalhes de uma certa mentalidade a respeito da vida e do mundo que, embora diferente da nossa, é capaz de gerar grande identificação e emoção: afinal somos seres humanos e conhecemos o que podem ser o sofrimento, a coragem, a necessidade, o medo, a esperança e a desesperança.

Por falar em coragem, haja coragem e brio naquelas pessoas que se dispunham a atravessar o chamado na época “mar Oceano” em embarcações precárias, levando às vezes 600 ou 700 pessoas, em viagens que podiam durar três meses ou muito mais.

Como fichei o livro para a pesquisa, trago aqui alguns trechinhos apanhados dos vários relatos:

“Os ventos tão rijos e contrários e os mares tão grossos, empolados e cruzados que fez as naus andarem às voltas com grande trabalho e perigo” e cada vez mais todos “começaram a experimentar a fúria daqueles mares”.

No caso da nau São Bento, anteriormente citada, sobreviveram ao naufrágio “322 pessoas, 224 escravos e 98 portugueses armados de lanças, espadas e rodelas e uma espingarda com apenas dez ou doze cargas de pólvora assaz danificada da água”.

Segundo o mesmo relato “A praia ficou coberta de corpos mortos, com tão feios e disformes gestos que davam bem evidentes mostras das penosas mortes que tiveram”.

Eis outro relato, sobre os náufragos quando chegaram ao litoral:

“veio a necessidade a ser tanta que nos forçava a comer umas favas, que foi a maior e mais arrebatada peçonha de quantas neste caminho comemos, porque em acabando de as engolir, davam com quem tal fazia, no chão, com todos os acidentes mortais; de modo que se lhe logo não acudiam com pedra bazar [cálculo intestinal de mamíferos ao qual atribuíam poderes medicinais] não podiam mais dar um passo avante e ficavam fazendo torceduras e jeitos com a dor e afrontamentos que pareciam endemoniados”.

Referindo-se a si mesmo, diz o sobrevivente, autor do relato, que andava: “despedindo-me para sempre daquele corpo que de mim nesta vida fora tão querido”.

E mais adiante: “e desta sorte, e com estas misérias e faltas, morrendo uns, esperando os outros pelo mesmo cada dia, passamos cinco meses…” perdidos nos cafundós da África.

De acordo com mais um relato, um dos náufragos conta que já em terras africanas assistiu o parto de uma elefoa. Segundo ele, o parto durava dois anos: “dores terríveis e grandes urros, no parto as outras elefoas escondem o filho, pois a mãe de tanta raiva quer matá-los, e só depois de uns dias entregam à mãe, mas que durante esse tempo as outras dão de mamar ao recém-nascido de forma milagrosa, de piedade.”

Para terminar, trago esse depoimento do náufrago prestes a ver afundar a nau em que estava:

“Houve esta manhã muitas lágrimas, com grandes demonstrações de contrição e arrependimento de culpas, disseram-se as ladainhas, pediam todos misericórdia a Deus, houve muitos que se davam grandes bofetadas com grandes mostras de sentimento e dor, outros traziam alguns retábulos de Nossa Senhora, mostrando-os de algum lugar mais alto, donde melhor se pudessem ver, punham-se todos de joelhos e com grandes gritos e muitos soluços e lágrimas, chamavam pela Senhora que lhes valesse em tamanha aflição, e já lhe não pediam outra coisa mais que remédio para as almas que da salvação dos corpos estavam todos desconfiados.”

Vou parar por aqui. Outra edição do mesmo livro vem com prefácio de José Saramago. No texto, Saramago diz que todos os portugueses deveriam conhecer e ler essa obra extraordinária.

Digo o mesmo com relação ao Brasil. Nos tempos individualistas e narcisistas em que vivemos, somos condicionados pela propaganda e por parte da chamada “indústria cultural” por sugestões como: “liberte-se”, “seja quem você é”, “conquiste sei lá o quê”, “vença”, “seja diferente” e por aí afora. Tudo bem, mas não podemos nos esquecer que vivemos em sociedade, dependemos de outras pessoas, temos responsabilidades para com elas e, mais que isso, que estamos dentro de uma narrativa histórica construída por gente que viveu antes de nós.

Neste sentido, creio que todos os brasileiros, particularmente, os jovens, deveriam conhecer e ler e reler livros como História Trágico-Marítima, entre outros, que contam quem eram e como viviam as pessoas antes da gente chegar aqui.

Conheça a seguir as obras de Ricardo Azevedo que tiveram entre as suas fontes a História Trágico-Marítima

Fragosas brenhas do mataréu

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No século XVI, em Portugal, um garoto de 15 anos é condenado a trabalhar na frota portuguesa e embarcar para o Novo Mundo. A viagem acaba em naufrágio e, quando consegue pisar em terra firme, o menino sobrevive meses solitário, até encontrar um povoado. Entre paixões, perigos e descobertas, há o confronto das verdades estabelecidas e o desassossego de uma vida cheia de indagações.

 

Trago na boca a memória do meu fim

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Neste romance, o leitor viaja por terras desconhecidas, repletas de aventuras, perigos, sobrevivências de um personagem cheio de sofridas histórias para contar. A narrativa mistura fatos reais e sobrenaturais, convidando o leitor a percorrer os descaminhos de um jovem que tenta de tudo para se dar bem, com seus desejos e muitos medos.

Ricardo Azevedo

Autor de vários livros para crianças e jovens, como A casa do meu avô, Aula de Carnaval e outros poemas, Contos de enganar a morte, Dezenove poemas desengoçados, entre outros, o paulista Ricardo Azevedo é também ilustrador, compositor e pesquisador. Dedica-se ainda a palestras e artigos sobre temas como discurso popular, literatura e poesia, problemas do uso da literatura na escola, cultura popular e MPB.

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