Murilo Mendes e a borboleta de Lúcia: a coleção Vaga-Lume em retrospectiva

Por Coletivo Leitor - 16 out 2019 - 12 min

ATÍRIA NOS ANOS 1950

A poucas semanas de a série Vaga-Lume, do selo Ática, se tornar, entre os dias 6 e 10 de novembro, a principal homenageada na próxima edição da Festa Literária Internacional de Maringá (Flim), no Paraná, o Coletivo Leitor põe hoje em evidência um dos mais conhecidos títulos dessa importante série, apresentado por um destacado poeta brasileiro do século XX: Murilo Mendes (1901-1975). 

Revelando uma faceta sua menos conhecida, a de leitor de livros infantojuvenis, o que Murilo escreve sobre O caso da Borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida (1910-2005), permite pensar no nexo entre a literatura de entretenimento e a dita “canônica”, estabelecida por críticos especializados, cujos critérios de excelência frequentemente divergem das exigências impostas pela indústria cultural.

O caso da Borboleta Atíria tem uma trajetória curiosa: publicado originalmente em 1951, pela Editora Melhoramentos, com o título de Atíria, a borboleta, a obra foi de imediato muito bem recebida nos meios literários, recebendo excelentes críticas de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Alphonsus Guimaraens e Guilhermino César, grandes poetas mineiros, assim como Murilo Mendes, que apresentou a primeira edição do livro. Vale lembrar que, por razões familiares, Lúcia Machado de Almeida tinha franco acesso aos altos círculos literários: ela era irmã de Aníbal Machado (portanto, tia da dramaturga Maria Clara Machado, autora de Pluft, o fantasminha), prima de Murilo Mendes e cunhada do “príncipe dos poetas”, Guilherme de Almeida. 

A boa recepção entre escritores de renome, porém, não foi acompanhada da repercussão junto ao público infantojuvenil, a quem a obra era dirigida. Isso só ocorreu duas décadas mais tarde, em 1975, quando o livro passou a se chamar O caso da Borboleta Atíria e a fazer parte da série Vaga-Lume, tornando-se a partir de então um best-seller. 

UM LIVRO INOVADOR

A demora para alcançar o sucesso entre as crianças talvez se relacione às “novidades” trazidas por Lúcia Machado de Almeida, que antecipariam algumas tendências da literatura infantojuvenil feita posteriormente. Em sua tese doutoral, À sombra da Vaga-Lume: análise e recepção da série Vaga-Lume (Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006), Catia Toledo Mendonça refere-se a algumas dessas novidades. Em primeiro lugar, o aproveitamento do gênero policial, em que há um “caso” a desvendar. Embora desde os anos 1940, quando se popularizaram os romances de Conan Doyle, tal gênero já agradasse o público juvenil, entre autores brasileiros ele só se firmaria posteriormente, a partir do trabalho de João Carlos Marinho, autor de O gênio do crime (1969), e Marcos Rey, responsável por vários policiais na Vaga-Lume nos anos 1980.

Mas Lúcia subverte as convenções da narrativa policial, de viés realista, inventando um caso protagonizado por insetos, com elementos da ordem do maravilhoso, como o casamento final entre Atíria e o Príncipe Grilo. Assim, explica Mendonça: “Temos então uma obra permeada por dois gêneros: o policial e o maravilhoso” (MENDONÇA, Catia Toledo, op. cit., p. 99).

Além disso, o elemento fantasioso é contrabalançado por informações de cunho científico sobre os insetos antropomorfizados, as quais apareciam por meio de elementos paratextuais (notas de rodapé e bibliografia ao final). Tal uso, embora já acontecesse na literatura adulta, em autores como José de Alencar, era mais uma das inovações de Lúcia em relação, por exemplo, à obra infantojuvenil de Monteiro Lobato, na qual as informações didáticas são fornecidas pelas próprias personagens, dentro do contexto ficcional.

À parte a combinação inusitada desses elementos díspares (realismo policial, componentes fantásticos e paratextos sobre entomologia), no texto de Murilo Mendes que reproduzimos a seguir, o poeta destaca o recurso à sátira, o uso de técnicas cinematográficas, com alternância de planos, e a “condenação da violência, do egoísmo e da crueldade”, sem afetação nem moralismo. 

Confiram então as impressões desse leitor de primeira hora, que logo percebeu os méritos do texto de Lúcia, profetizando a conversão da obra em um clássico da literatura infantojuvenil, condição a que a notável lepidóptera só iria aceder anos mais tarde, auxiliada pela branda luminosidade de um companheiro inseto, o Vaga-Lume, mascote da série idealizada por Jiro Takahashi, cujo depoimento pode ser consultado aqui.

ATÍRIA PARA MURILO

Tenho a honra e o prazer de apresentar às crianças brasileiras a gentilíssima senhorita Atíria, de seu verdadeiro nome, Atyria isis, pertencente à tradicional família Geometridae, muito comum nos bosques do nosso país. Estou certo entretanto de que também as pessoas adultas de bom gosto hão de querer travar relações com essa adorável borboleta. Solicitado a fazer a apresentação oficial da debutante, hesitei um minuto: é que levado pela mão de sua própria criadora, Lúcia Machado de Almeida, a nova figurante do mundo infantil já teria garantido inicialmente seu sucesso, circulando em todas as salas e jardins com sua beleza suave e o encanto de suas asas amarelas e pretas. Seduziu-me, entretanto, além da honra mencionada, a ideia de tomar parte na conspiração para libertar a borboleta do seu casulo de papel. Pois me parece que, terminada a leitura do livro, a borboleta Atíria começará a viver no espírito, e – ouso dizer – no coração de todos vocês, felizes leitores, uma vida independente. De fato, assim acontece às criações verdadeiramente vivas nascidas da necessidade interna de seus inventores. Assim acontece à nossa encantadora borboleta. E de hoje em diante os que seguirem as fascinantes aventuras em que se viu envolvida Atíria passarão a falar borboletano. Meus caros amigos, não se iludam: o borboletano é importantíssimo!

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Repito sem sombra de brincadeira, muito a sério: o borboletano é de primeira importância. Falar borboletano é iniciar-se nos mistérios dos seres mais esquisitos, mais delicados, mais raros ao mesmo tempo que mais comuns, da criação. Um ser gratuito, como outros pequenos seres que poderão nos conduzir aos abismos de uma pequena meditação religiosa oferecida a todos, na sua simplicidade e na sua universalidade. A borboleta, na escala dos entes criados, aparenta-se à rosa: na verdade é uma rosa volante, se bem que seja mais variada em cores e mais caprichosa no desenho. De onde vem e para onde vai a borboleta? Que músico de gênio poderia gravar seu ritmo, e que dançarino de gênio poderia reproduzir seu voo? E que pintor fabuloso poderia, mesmo com a minuciosidade dos pintores clássicos do Oriente, transpor as cores feéricas de suas asas? Acima de tudo, porém, detenho-me nesse pequeno problema, a missão secreta da borboleta. Missão que se vale de armas humildes, a insinuação, o toque ligeiro, a delicada alusão… tudo que os novos ricos desconhecem, a borboleta, essa pobre, cuja origem ilustre se perde no longínquo dos tempos, traz ao nosso exame, e com que lucidez! A borboleta é contra o exagero, contra os ruídos inúteis, contra a propaganda, contra o gigantismo, contra tudo de feio e de anti-humano que desfigura a face do nosso século. Por isso mesmo é que Atíria ia sendo vítima de uma terrível conspiração conduzida pela sinistra Caligo a serviço do espírito das trevas, habitante da Gruta dos Horrores… Entretanto o mal não pode subsistir, do contrário o mundo cairia no vazio. Existem Caligo e o sombrio ditador Esqueleto, mas existem também o príncipe Grilo e o inteligente Papílio, além de outros seres que integram a conspiração do bem e se revestem das armas da claridade. O próprio bem, de resto, é usar armas singelas que passam despercebidas à rudeza do adversário. O universo dos insetos possui também seus Davis que, com uma pedrinha no bolso, derrubam sorrindo os brutos e pretensiosos Golias.     

A história de Atíria apoia-se em elementos da melhor e mais antiga tradição, apresentando alguns dos símbolos mais assíduos à visitação do espírito do homem. Em ensaios anteriores, Lúcia Machado de Almeida mostrara já sua força de narradora, a humanidade do seu instinto, sua familiaridade com o mundo dos bichos, principalmente dos bichos do mar, tendo encontrado uma linguagem de singular plasticidade para exprimir sua adesão ao mundo mágico da natureza. Agora volta-se ela para os insetos, e essa familiaridade transforma-se em domínio absoluto do material escolhido por sua simpatia afetiva, ao mesmo tempo em que oferece observações só possíveis numa pena feminina. A partir de Atíria ela nos surge como um clássico da literatura infantil brasileira, pois na nossa opinião o valor especial de um livro para crianças deve repousar na igualdade dos termos, fundo e forma servindo uma grande lição humanística. Ora, nada mais raro de se atingir do que a simplicidade, que é uma conquista sobre os erros e deformações do nosso ambiente, e que tanto nos solicitam. A simplicidade de forma em Atíria, aliada ao conteúdo humano e vivíssimo do livro, eleva-a à categoria de obra literária de primeira ordem; simplicidade, entretanto, que se afasta do famoso “despojamento”, sinônimo muitas vezes da falta de invenção. Tal simplicidade é rica de recursos e de efeitos que compõem a trama variada e movimentada do livro, não apresentando nenhuma descaída. Entre as muitas qualidades da autora – e a ternura parece-me a suprema – citarei seu humor, que a conduz muitas vezes à sátira: por exemplo, no delicioso capítulo do Concerto, denunciador da malícia mineira. Em certos episódios serve-se a escritora da técnica cinematográfica, mudando violentamente de planos, forçando o espectador a tomar parte direta na ação, produzindo efeitos de uma graça irresistível, combinando fantasia e realidade. Deste modo sua pedagogia, repartindo-se entre a brincadeira e a ternura, atinge com força de penetração a sensibilidade infantil, pois seus largos dons imaginativos acham-se equilibrados pelo controle crítico. Ajunte-se a tudo isto a total ausência de pedantismo, a oportunidade com que são ministradas algumas informações de história natural, e evidente condenação da violência, do egoísmo e da crueldade, a beleza da virtude transposta sem sombra de moralismo. Não é este de resto um dos menores méritos da história de Atíria, pois na verdade eis um problema que tem preocupado continuamente a inteligência de educadores, escritores e teólogos: a apresentação atraente do bem. Não resta dúvida de que é mesmo este um dos grandes problemas da nossa época, principalmente no setor da juventude: pois é fácil observar que os partidários do outro lado sabem se armar – e com que fascinantes armas! Entretanto a boa intenção de inúmeros escritores conscientes nem sempre é realizada. A autora da presente história, a meu ver, venceu. Escapou de cair em certas fórmulas primárias. Soube combinar princípios que atravessam todas as gerações com outros próprios à nossa época. Por tudo isto Atíria merece ser lida com atenção. A fim de que as crianças do Brasil desde cedo aprendam a detestar a crueldade, a desumanidade e o terror que já se iam tornando leis absolutas do mundo. A fim de que as crianças do Brasil se familiarizem ainda mais com as armas do bem, da lucidez, da claridade. Para tal, não há nada como cedo aprender borboletano, principalmente se a professora se chama Lúcia Machado de Almeida.

Murilo Mendes, junho de 1950

(Texto reproduzido da primeira edição da obra. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1951. Ilustrações de Hilda Benett)

OUTRAS CURIOSIDADES SOBRE O LIVRO

  • Além das já mencionadas inovações que Atíria trouxe para a literatura infantojuvenil, Lúcia Machado de Almeida também se antecipa a outros autores ao tematizar o tema da deficiência física (Atíria tem uma asa malformada, que a impede de voar longas distâncias). Não por acaso, entre as virtudes da obra está a de incentivar uma atitude mais inclusiva diante das diferenças, combatendo o “capacitismo” antes mesmo de o termo existir.
  • A história de Atíria rendeu algumas adaptações para o teatro, foi enredo de uma escola de samba paulista e, em 2011, converteu-se em um balé dançado pelo Núcleo de Artes Cênicas Sebastian, de Osasco/ SP, formado por dançarinos de comunidades carentes. 
  • Um belo depoimento sobre a gênese do livro, explicada pela própria Lúcia, pode ser vista no documentário Lúcia Azul, de Bettina Turner e André de Campos Mello, realizado em 2000, por ocasião do 90º aniversário da escritora.

O LIVRO NA SÉRIE VAGA-LUME

Mas, a despeito dos desdobramentos da obra (leituras, análises, adaptações), nada substitui a leitura do livro na bela edição da Ática, que passou por uma reformulação gráfica em 2015.

O caso da Borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida 

O caso da Borboleta Atíria

A singela e delicada borboleta Atíria se envolve em uma arriscada aventura para desvendar o mistério por trás dos crimes que tiraram a vida de Helicônia e Vanessa Atalanta, amigas do Príncipe Grilo. Ao ajudar Papílio, a corajosa borboleta enfrenta grandes perigos, como o encontro com Esqueleto-Vivo na Gruta dos Horrores, para descobrir o paradeiro do assassino que assombra a rotina dos insetos na floresta.

 

Foto de Capa: Suplemento Literário de Minas Gerais/Arquivo