Medo, vulnerabilidade e empatia: entrevista com Marina Miyazaki

Por Coletivo Leitor - 29 out 2020 - 18 min

A literatura para crianças e as habilidades socioemocionais (parte 1)

A propósito do lançamento do mais recente título da coleção Dó-ré-mi-fá, da Scipione, O medo de rabo preso, de Marina Miyazaki, com ilustrações de Gilmar Machado, o Coletivo Leitor organizou no dia 8/out/2020, uma conversa com os autores do livro e o terapeuta, escritor e especialista em habilidades socioemocionais, Rodrigo Usba.

Assista ao encontro clicando aqui

Nas próximas semanas veicularemos entrevistas inéditas com os participantes dessa live, a primeira, delas com Marina Miyazaki, cujas respostas você lerá seguir.

Coletivo Leitor: A pretexto de abordar um tema tradicional da literatura infantil, os terrores noturnos, o medo na hora de dormir, seu livro acaba enveredando por outros caminhos, tratando de questões delicadas, como a doença, o medo da morte e da orfandade. Conte-nos um pouco como surgiu a ideia desse projeto.

Marina Miyazaki: Parti daquilo que já é conhecido pela maioria das crianças, o medo da noite, o medo de ficar sozinho e o medo de monstros para seguir incrementando complexidade aos poucos, tentando acessar situações e sentimentos menos conhecidos pelas crianças, pois elas ainda não possuem vivência suficiente, referências próprias, nem vocabulário para expressar o que sentem ou descrever situações pelas quais podem estar passando.

A criança se expressa à sua maneira, o adulto tem dificuldade de captar a linguagem não-verbal, está sempre ocupado demais para enxergar algo além do óbvio. Até parece até que não fomos crianças, tamanha a dificuldade de nos comunicar com elas de forma satisfatória.

É provável que no início do livro, o protagonista já estivesse percebendo os rumores da separação dos pais, por isso tentava demonstrar de forma simples o medo de ficar sozinho.

Não me lembro exatamente como surgiu a ideia do projeto, boa parte dos meus textos foram escritos há anos, alguns remontam à era pré-filhos, outros, à pós-filhos. Meu caçula está com 21 anos, por aí dá para ter uma ideia. Mas sempre começo escrevendo uma frase, nunca é uma ideia do todo. E, claro, sempre entram experiências pessoais, como a de cobrir a cabeça sem tirar os olhos para fora da coberta, mesmo com calor, pra não dar de cara com algum monstro-que-não-existe olhando pra mim; não descer da cama depois de apagar a luz pra não ser puxada pelos pés pra baixo da cama etc.

CL: Seu livro também revela um tratamento do medo mais psicológico que moral. Você identifica a funcionalidade desse sentimento como mecanismo de defesa contra as situações de perigo, reconhece a realidade dos sentimentos e sensações, sem subestimá-la no confronto com a realidade objetiva/externa. Você chega até a formular, de modo bastante pessoal, a ideia de uma “cura pela fala” (“Se você falar sobre os monstros… talvez eles resolvam sair pela porta da sua voz…”). De onde vem essa compreensão da vida subjetiva? Ela deve algo à psicanálise?

MM: Trabalhei por muito tempo ao lado (não na mesma área) da professora e psicanalista lacaniana Cândida de Oliveira Martins. Foram anos de conversa sobre tudo, talvez eu tenha assimilado alguma coisa por osmose, alguma plasticidade no modo de pensar, de ver e escutar o outro, o problema do outro (só dos outros, não os meus, esses eu não consegui resolver). Quanto à teoria psicanalítica, não sei nada.

Procurei evitar o termo “cura”, pois não tive a intenção de sugerir que as pessoas podem se curar de qualquer coisa, até porque acho que nem temos cura. Digo isso, não no sentido pessimista, mas por crer que o esforço por se autodesvendar pode modificar nossa percepção sobre nós mesmos e levar à descoberta de formas para lidar com dificuldades e incômodos.

Por exemplo, eu tenho dislexia. A dislexia não tem uma cura, no sentido restrito dessa palavra, assim, conviverei com ela pra sempre. Aprender a lidar com isso leva muito tempo, porque não é apenas metodologia, técnica, macetes de como lembrar se a palavra é com Ç ou SS, mas envolve as sequelas emocionais que nos marcaram antes mesmo de sabermos o que é dislexia. Por isso, os “erros” também são relativos, escrever 13 em vez de 31 não significa que eu não saiba aquela operação matemática, portanto, uma criança não poderia ser objeto de cobranças para se adequar rapidamente ao padrão, ela precisa de tempo para se saber, para saber de si. E não é com 7, 8, 9 anos de idade que entenderá como a dislexia age nela.

O que eu quero dizer com isso é que o conceito de cura vem muitas vezes carregado de capacitismo, quando as pessoas consideram que estar bem é estar dentro daquilo que foi normatizado pelas pessoas típicas, sem doença, sem distúrbios, sem deficiências etc.

No meu livro, eu quis frisar para a criança quão importante é encontrar um canal, uma porta de expressão dos medos para alertá-la quanto ao fato de que, se ela não for clara, o adulto não vai entender. É importante considerar que, por trás desse “medo comum”, pode estar um abuso, um bullying etc. Falar é acessar nossas questões internas, e, portanto, mesmo que ninguém responda com uma solução pronta, só o fato de formular o raciocínio para contar algo ao adulto já implica um processo de construção do conhecimento de si, um início de compreensão. E, como escrevi na história, uma “porta de saída para os monstros” pode resultar em alívio e mobilizar a ajuda de um adulto que escutou e conseguiu entender.

Sabemos que nossas condições emocionais interferem no tratamento das doenças físicas, mas não existem receitas, métodos, medidas que respaldem a afirmação de uma “cura pela fala”.

Sobre o medo como mecanismo de defesa, achei importante lembrar ao adulto que, quando ele manda a criança “perder o medo” e “criar coragem”, como se isso fosse fácil e vantajoso, lhe falta empatia; até parece que ele nunca sentiu medo. É possível se livrar ou enfrentar algo que nem sabemos o que é? Quais critérios para escolher que medos devemos perder e quais devemos conservar? Como uma febre, o medo também nos alerta. Por isso, logo na primeira página o recado foi o seguinte: “Medo é pra perder ou pra entender?”.

CL: Outro tema presente no seu livro, ainda que de modo oblíquo, é o da família reconfigurada. O pai e a mãe do protagonista se separam, o pai passa a morar com um amigo, o “tio Pio”, com o qual parece manter uma relação homoafetiva. Que papel a literatura infantil pode desempenhar ao defrontar a criança com diferentes modelos de família?

MM: Acho que o momento em que o menino adota “Pio” como forma de chamar o “tio”, explicando “nem pai, nem tio, Pio”, é quando ele realmente ingressa em uma nova configuração familiar. Pio então adota, acolhe, integra o menino como parte da nova família que ali se constituía. Esse fortalecimento de elos é representado de forma mais concreta e lúdica pela brincadeira de montar pontes com cadeiras que ligam a mesa do pai e a cadeira de Pio ao castelo do menino.

Sobre a união entre o pai e Pio, preferi deixar livre a interpretação do leitor para que ele se reconheça ou não, de acordo com a sua necessidade ou com o que está vivenciando. Ao incluir diversas interações familiares – pai, mãe e filho; mãe e filho; pai e amigo ou companheiro e, filho, mãe, pai e Pio –  não dei nome a nenhuma dessas situações no intuito de apresentá-las de forma serena e natural para a criança, para quem tudo é novidade, seja uma separação dos pais, uma união homoafetiva, uma doença etc.

Mas quis, sim, dar ênfase ao fortalecimento emocional do menino, gerado a partir do relacionamento entre pai e Pio. Ressaltei o papel fundamental de Pio para estabilizar a crise vivida por ambas as famílias, mostrando quão importante era para o pai estar emocionalmente bem para enfrentar (e ajudar o filho a também fazê-lo) a enfermidade da mãe do menino.

Entendo que uma família estruturada como a do livro nem sempre é a realidade das crianças, mas numa história curta, seja ela para crianças ou adultos, é inviável incluir muitas vulnerabilidades sociais e emocionais; é preciso escolher um tema e não ramificar demais a trama.

A literatura possibilita o desenvolvimento da empatia nos colocando diante de diferentes realidades, algumas das quais inacessíveis às nossas bolhas sociais, dando visibilidade a pessoas e problemas distantes ou até invisíveis para a maioria de nós.

CL: No texto, você também optou pelo uso de frases entre parênteses, com letras em tamanho reduzido. Isso tem a ver com a sua experiência com a dislexia, conforme você contou para a Laura Vecchioli, editora do livro. Poderia explicar melhor essa história?

MM: Só descobri minha dislexia depois de adulta e “saí do armário da dislexia” muito mais tarde também, depois que tive filhos. Antes, eu achava que todo mundo confundia e errava como eu, só percebi que a frequência das falhas era maior em relação a outras pessoas quando os filhos, ainda pequenos, chamavam minha atenção: “Fulano, confira aí, é certeza que a mamãe deve ter confundido o número do telefone”, “Mãe, você não trocou o dia da reunião na escola? Os pais dos nossos colegas vieram hoje…” etc. Todo mundo, às vezes, troca, erra, tem dúvida sobre como escrever uma palavra, porém, na pessoa com dislexia a frequência é bem maior, a ponto de atrapalhar o seu dia, seu trabalho, a rotina escolar.

A dificuldade com o uso dos parênteses é uma característica minha, que eu quis trazer para dentro do texto. Isso não significa que outras pessoas com dislexia apresentem essa mesma dificuldade. No meu caso, frases entre parênteses dentro de um período maior me fazem esquecer o que li fora dos parênteses, portanto, releio pulando os parênteses. Tenho que ler três vezes, no mínimo. Aliás, gostaria de saber como uma pessoa sem dislexia lê períodos com parênteses.

O mais curioso é que eu nunca havia percebido que isso também me incomodava tanto na leitura, até começar a escrever para criança.  Além de narrar, eu queria me aproximar ainda mais da criança, resolvi então escrever coisas entre parênteses diminuindo bem a fonte como se estivesse falando baixinho, cochichando com o leitor, normalmente criticando algumas posturas do adulto. Durante as exaustivas revisões, fui notando que diminuir a fonte nos parênteses me ajudava a ter melhor rendimento na leitura. É o tipo de coisa que nenhum manual trará, pois são incontáveis as minúcias individuais que nos diferenciam. E elas são tão ou mais importantes que os “sintomas comuns”, classicamente listados para um diagnóstico. Há peculiaridades que especialistas muitas vezes desconhecem, exemplo disso é o que se tem dito a respeito da “fonte especial para dislexia”. Eles afirmam categoricamente que essa fonte melhora o desempenho da leitura. Não no meu caso, pois não apresento dificuldade em reconhecer letras, às vezes, pulo parágrafos inteiros, tenho essa particularidade com os parênteses, tenho dificuldade de mudar de linha quando a página é muito larga, às vezes, repito a leitura do mesmo parágrafo mais de dez vezes, não por não entender o que leio, mas por falta de atenção. E nada disso tem a ver com tipo de fonte. Fontes especiais podem, sim, ajudar algumas pessoas com dislexia, mas isso não pode virar regra, não há “A fonte dos disléxicos”, pois, como disse o typedesigner Tony de Marco, que também tem dislexia, uma fonte bem elaborada pode melhorar a leitura de qualquer pessoa.

CL: Ainda com relação à história de O medo de rabo preso, no livro, o protagonista, surpreendido pela doença da mãe, se transforma, é levado a ocupar outro lugar nas relações familiares. Ele, que era o alvo exclusivo do cuidado dos pais, passa também a ocupar a posição de alguém que cuida dos outros. Como isso se relaciona ao processo de amadurecimento não só do menino, mas da família como um todo?

MM: Acho que são rituais de passagem que todos nós devemos vivenciar. O amadurecimento para alguns chega precocemente, mesmo que a criança não esteja preparada, por isso há necessidade de apoio, seja de algum parente ou na escola. Alguns não terão uma família estruturada como a da minha história, na qual o menino encontra recursos importantes no vínculo com os três adultos, mesmo havendo momentos de desequilíbrio.

Um livro não substitui o amparo de alguém que convive com a criança, porém, o acesso à literatura pode simbolizar um acolhimento, na medida em que a criança se vê representada como sujeito de uma história. Se isso acontecer a um só leitor, já se justifica eu ter escrito o livro.

Sobre amadurecer e mudar de posição, a mudança nem sempre é de “ser cuidado” para “cuidar de alguém”. Por exemplo, entre os retornos que recebi sobre meu livro Pai Francisco, que trata da relação entre um filho cujo pai cumpre pena em regime fechado, o que mais me animou a continuar a escrever sobre crianças em situação de vulnerabilidade foi o e-mail que uma pessoa me mandou a pedido do sobrinho, leitor da história. Esse menino disse ter se identificado com o protagonista do livro e contou que também esperava o pai, não para tirar a bola do telhado, como em Pai Francisco, mas para aprender a andar de bicicleta. Como o retorno do pai demoraria muito, ele decidiu aprender sozinho para fazer uma surpresa. Isso corrobora o que o livro busca ressaltar, que a importância do vínculo entre esse filho e o seu pai independe do que a sociedade pensa desse homem. É esse vínculo que sustenta emocionalmente o menino e o faz preservar o que admira nesse pai, mesmo em circunstâncias desfavoráveis. Assim ele muda de posição quando busca meios internos para manter o que os une.

Na maioria dos casos, a sociedade perde a criança e o adulto que ela pode vir a ser por não enxergar a importância de proteger essa criança e seus laços afetivos, pois acaba estendendo seu preconceito e sua hostilidade à família de quem cumpre pena.

CL: No fim do livro você usa um recurso interessante que é transformar os desenhados pelo menino em uma forma de tratamento. A “cura pela fala” se conjuga à “cura pelo traço”. Como as duas formas de expressão se articulam e potenciam?

MM: Embora uma questão terapêutica também possa estar implícita, não quis dar ênfase à cura.  Mesmo que palavras e desenhos sejam recursos usados nas psicoterapias, por si só eles não garantem benefícios sem acompanhamento profissional. Minha intenção também foi mostrar algumas formas de expressão ao alcance da criança, pois considero de extrema importância que ela encontre uma forma de pedir ajuda, caso esteja passando por perigos, violência, abusos etc.

Além disso, eu não poderia dizer ao leitor que a receita do menino curou a doença da mãe, nem o contrário, pois sabemos que o apoio emocional pode ajudar alguém a se libertar dos seus monstros e medos, sejam eles quais forem: doenças, medos, ansiedade, etc. Sabemos que saúde não é apenas um corpo íntegro, a fragilidade emocional se instala antes da doença física, ou simultaneamente ao seu desenvolvimento, por isso falar sobre o assunto é uma maneira de integrar a criança à família e aos fatos. Esconder um problema grave de criança não adianta, ela sempre capta algo. Não falar a respeito talvez implique condenar a criança a resolver sozinha seu sofrimento.

Além disso, incluir aquele bilhete que o menino escreve para a mãe (com a ajuda do pai, claro, pois o garoto ainda não é alfabetizado), dá à história o tom ingênuo, infantil, de quem acredita literalmente que monstros grandes são piores que os pequenos, como os da mãe, supostamente mais fáceis de dominar. Nessa fase a criança ainda confunde o real com o lúdico, ela confia que o resultado dos acontecimentos depende da sua vontade.

Por isso coloquei mais essa missão para a mãe, que, ao receber as instruções do filho já antecipa um possível insucesso para o “tratamento” prescrito, atribuindo-o ao fato de ela não saber desenhar tão bem quanto o menino. Assim, ela o prepara para uma possível decepção, sem criar falsas expectativas nem tirar dele a vontade de buscar alternativas para ajudá-la, demonstrando solidariedade e empatia.

CL: O final da história fica em aberto, não sabemos se a mãe se curou ou não. Como você imagina que esse “final em suspenso” funcionará com os leitores?

MM: A todo momento procurei fugir da polaridade, buscando equilíbrio, sem deixar nada em cima do muro, mas indicando possibilidades, caminhos, conexões, mostrando que existem diversas maneiras de analisar uma situação. Um desfecho não precisa ter necessariamente apenas duas opções excludentes: cura ou não cura, vida ou morte, certo ou errado, bom ou ruim, bem ou mal etc. Ao longo da história, incluí situações de dualidade, quando duas partes podem coexistir, como no momento em que o menino, questionado pelo primo, diz não saber se prefere morar com a mãe ou com o pai. Pio assegura que ele pode gostar das duas coisas, preferir a companhia do pai em certas situações e a da mãe em outras, exemplificando com brinquedos.

Tentei incorporar ao enredo situações antagônicas que se complementam, como a separação dos pais, com consequências negativas, mas destacando a importância da posterior união estável do pai para os futuros acontecimentos; assim como a doença que trouxe dores, mas também amadurecimento, união, fortalecimento e empatia. São situações complexas, com carga bastante negativa, mas que acabaram, remodelando as relações entre as pessoas, acomodando-as em uma nova composição familiar.

Já a liberdade de escolher um final é provocativa e gera incômodo, o que leva o leitor a repensar todo o processo para chegar à conclusão que considere mais justa e aceitável conforme seus parâmetros. E nessa releitura em busca de respostas, ele ficará mais atento às entrelinhas e ao subtexto, o que propicia novas reflexões.

Na ilustração da última página, Gilmar retrata o que parece ser um sinal de esperança, como algumas pessoas disseram, mas essa palavra “esperança” parece remeter mais à crença de que algo venha a acontecer mesmo sem a nossa intervenção. A história, porém, demonstra algo um pouco diferente, que possibilita outra interpretação também positiva, como um ciclo que se conclui quando o menino se torna sujeito do próprio destino, e isso independe da escolha que o leitor faça do final, pois a mãe agora sabe que o filho encontrará meios para lidar com seus monstros.



Marina Miyazaki nasceu no interior do Paraná em 1967. Teve cinco filhos, plantou árvore e publicou os livros Dislexicando e Pai Francisco, ambos pela editora Pólen/Jandaíra, em 2015, e agora, pela Scipione, O medo de rabo preso.  

Até aí foi fácil, difícil está sendo criar os filhos, não deixar a árvore morrer e vender os livros que escreveu.

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