Mas nunca é demais repetir

Por Nilma Lacerda - 23 out 2019 - 6 min

(Texto inédito, originalmente apresentado no XIV Encontro Nacional do Programa de Incentivo à Leitura Proler / Fundação Biblioteca Nacional, nov. 2009)

Tomo da estante um romance que há muito esperava sua leitura, Eugénia e Silvina, da autora portuguesa Agustina Bessa-Luís. Tomei o romance para leitura noturna, já deitada, e desperta para a ficção. História emaranhada, três personagens da mesma família, da bisavó à bisneta, todas com nome de Eugénia, sucedendo-se uma à outra, as histórias indo e voltando, em um novelo que é também o da própria história de Portugal, a luta de dois irmãos pelo trono, D. Miguel e D. Pedro IV, o nosso Pedro I. A profusão de informações indo da história à História, o estilo elevado, as construções complexas me fazem lembrar o motivo de haver abandonado essa leitura, anos atrás. Quase a ponto de vir novamente a fazê-lo, trocando o livro por outro mais atraente, levo um susto, de repente. Acabo de ler, pela segunda vez, a mesma explicação para a mesma Eugénia, duvido de mim, estou cansada e não presto atenção, vou virar as páginas para conferir, mas encontro a voz da narradora: “Acho que já disse isto, mas nunca é demais repetir. A bom leitor meia palavra não basta” (BESSA-LUÍS, Agustina. Eugénia e Silvina. Lisboa, Guimarães Editores, 1989, p. 30).

Deixar este livro? De jeito nenhum! Postergar a leitura? Não: começar a ler mais cedo. Na boa linhagem de Machado de Assis, Agustina toma o lugar-comum para examiná-lo: “Para bom entendedor, meia palavra basta”. Crescemos ouvindo isso e acreditamos no que ouvimos até que a autora vem desestabilizar a certeza: o leitor, a leitora são aqueles que constroem sentidos e precisam, para tal, da palavra inteira. Vários críticos, a começar por Jean-Paul Sartre, passando por Barthes, chegando aos teóricos da estética da recepção, observam a figura do leitor como a de um coautor, que faz o texto girar como um pião, permitindo nesse movimento a criação do sentido, realizada no ato de ler.

Para mover-se na confusão de Eugénias, nas pretensões de Pedro e Miguel ao trono português, é das palavras inteiras que a leitora necessita, o texto repetido, o mesmo, dito de várias maneiras para que não haja enganos ao longo da narrativa, ao longo da história. A autora entrega à narradora não só o papel de contar a história, mas de mediar a leitura. Nesse papel, diz, mais adiante: “Serve tudo isto para traçar o quadro da região onde terríveis factos vão desdobrar-se. Digo bem que se desdobram, porque às vezes um só gesto leva cem anos de preparo” (Idem, p. 32). 

Um gesto que leva cem anos a preparar-se. Uma opção que pede muito tempo para se fazer, e mais para se sustentar. Estamos falando da figura da leitora? Em Casa da Leitura – Presença de uma Ação, defendo que ser leitora ou leitor é uma opção, uma escolha que se deve sustentar continuamente (LACERDA, Nilma Gonçalves. Casa da Leitura: presença de uma ação. Filosofia e perfil da Casa da Leitura. Programa Nacional de Incentivo à Leitura / Proler. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/ Casa da leitura / Proler, 2002). 

Da mesma forma, observo que uma leitora não se forma espontaneamente, mas é fruto da ação de outros leitores, que próximo a ela realizam a tarefa da mediação, acompanhando-a em seu trabalho, ajudando-a com as palavras que ignora, as estruturas que não domina, o campo simbólico que soa estranho. O mediador segue junto ao caminhante, como um comentador ao longo do caminho que o outro desconhece. Vai andando, informando, corrigindo: “Aqui tem umas pedras soltas, adiante já se vê o rio, depois da curva começaremos a subir”.  

Me assustei em Juiz de Fora, anos atrás, ao ouvir uma professora revelando o quanto Itabira não gostava de seu poeta, o quanto Itabira acreditava que Drummond não gostava de Itabira, e que foram professores de literatura, indo à cidade, que ajudaram os itabiranos a ler no poeta seu amor pela cidade. Drummond não está denegrindo Itabira: fala da vida provinciana, opressora, e também de sua dor pela cidade que já não é, pelos lucros levados da terra a troco da subsistência miúda na paisagem gasta. Os professores leram os poemas ao lado dos leitores, acompanharam-nos para ajudar a saber que dor é essa de que fala o poeta:

“Itabira é apenas uma fotografia na parede.

Mas como dói!” 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 10 livros de poesia. José Olympio, Rio de Janeiro, 1973, p. 45    

Em posição de mediação, ligando palavras de um a palavras de outro, puderam urdir a compreensão: a relação de Drummond com sua cidade natal não espelha um amor romântico, ilusório, mas um sentimento complexo em que cabem afeto e ressentimento, nostalgia e críticas. Para o poeta, Itabira não é um objeto de culto, não se presta a louvações; demanda expressão estética das diversas emoções experimentadas.  

Não aparecem nas curvas dos caminhos nem dão em árvore os mediadores. São fruto de trabalho, em longa e contínua formação. O ato de ler é trabalho, e como em todo trabalho podem acontecer, e acontecem, encontros e desencontros. Para multiplicar os encontros, é preciso reconhecer o processo de formação de sentidos, as etapas de compreensão na leitura de texto, as formas de atribuição de sentido, a seleção do significado correto dentre os inúmeros possíveis para uma palavra. Porque, ao contrário do que apregoa o senso comum, pingo não é letra, sequer para bom entendedor. Uma quantidade de pingos não forma um texto, que é tecido na urdidura dos vocábulos, na especificidade dos gêneros, na arquitetura do contexto.

Só com o ato de ler sendo efetivamente foco de metodologia específica, almejaremos uma formação competente, para bem longe do espontaneísmo que caracteriza muitas vezes as ações em torno da leitura. Pois a leitura, sendo prazer, não é festa; sendo trabalho, não é suor. Mas sendo convenção pede protocolos, sendo ciência pede metodologia. São esses alguns dos caminhos apontados pelos cursos de formação continuada de mediadores de leitura. Um bocado de trabalho. E para quê? 

Para quê? Mais que um desafio é tarefa urgente para cada brasileiro, cada brasileira, responder à questão fundamental, proposta por José de Alencar, em 1873, retomada por Affonso Romano de Sant’Anna, nos anos de 1970 e por Renato Russo, na década seguinte. Que país é este? Que país desejamos? Que país estamos fazendo?

Ao sustentar a formação de mediadores de leitura, o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), da Fundação Biblioteca Nacional, agiu e tem agido – nos locais em que ainda se mantém –, para propiciar respostas. O Brasil é o país que cada leitora escrever, que cada leitor narrar, é a pergunta que cada leitura deixar. 

Nilma Lacerda

Nilma Lacerda nasceu e vive no Rio de Janeiro. Escritora, tradutora, professora, recebeu prêmios por sua obra literária, em que se destacam Manual de TapeçariaAs Fatias do MundoCartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do RioSortes de VillamorPena de GansoPégaso na Sala de Jantar. Organizou Esses livros sem idade e Temas polêmicos na literatura – a necessária presença na escola (lançamento próximo). Ministra oficinas literárias e desenvolve o Diário de Navegação da Palavra Escrita na América Latina, cujos fragmentos vêm sendo publicados em São Paulo Review (www.saopauloreview); escreve também para a Revista Pessoa de Literatura Lusófona (www.revistapessoa.com). Professora colaboradora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, mantém pesquisas sobre leitura, escrita e criação literária.

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