Literatura para desarmar racismos geracionais

Por Heloisa Pires Lima - 17 jun 2020 - 4 min

Imagine uma aldeia rodeada de mata, onde águas fluem debaixo de um céu variado em cores, e terras férteis para os pés que nela habitam. Pois, nossas bibliotecas são como aldeias. A autoria desenha as feições, veste as figurinhas e as posiciona nos cenários da criação literária, que conversa com outras tantas moradoras de uma mesma prateleira. O par redação e ilustração embute crenças e valores para as, classicamente chamadas, “janelas para o mundo”.

Hora, então, de seguir pelo imaginário acrescentando a ideia de continentes. Aproveite e revisite a aldeia de letras que abasteceu tuas primeiras leituras. Nessa faísca de memória afetiva, é quase certo cada bloco surgir homogeneizado, reunindo tipo físico, ambiente social e aprendizado alusivo ao vínculo. Dependendo da tua faixa etária, é fácil constatar e justificar a predominância da perspectiva da origem europeia frente às demais. Porém, o breve exercício é, apenas, relacionar a formação de acervos para uma geração de leitores às origens continentais desdobradas nas infinitas possibilidades diaspóricas. E, sobretudo, perceber a falta de muitos mundos nessa janela.

Os deslocamentos humanos na contemporaneidade não param de lançar demandas para a excelência educativa, atenta ao convívio na diferença. Se os leitores são diversos, a representatividade a ser contemplada na produção de materiais para a infância pode ser sensível a tal diversidade. A ficção é poderosa como fornecedora de elementos para a percepção do real. 

Em especial, repare o conjunto “origem africana” nos livros de outrora e nos que possam ser oferecidos hoje em dia. Sem negligenciar um histórico de reprodução de hierarquias, promotor de estereotipias, clichês associados ao modelo de afro-humanidades, é importante compreender que eles fazem parte da dinâmica do racismo que não deixa de fora as infâncias. Por isso, a busca é por uma literatura potente que desfaça essas inadequações numa perspectiva antirracista.

Benedito (Caramelo), de Josias Marinho, é, entre outras, exemplar como obra que apresenta toda a beleza de uma referência afro-brasileira mineira. Visualmente, o protagonismo está no traço afetuoso, construtor do relacionamento do menino com o tambor do Congado. O autor, que também é o ilustrador, brinca ainda com o sentido profundo do enegrecer e se apropriar de sua própria cultura sem precisar escrever uma só palavra. A qualidade parte do ponto de vista de um autor que conhece bem o assunto e escolhe um ângulo enriquecedor. A densidade artística sempre passa pela vivência inspiradora, e eu imagino todo mundo saindo da leitura respeitando, admirando a cultura e querendo ser aquele menino.

A autoria é desafiada pelo repertório. Eu mesma, ao escrever com minhas mãos negras, tive a África como olho d’água para a criação. Até o dia em que eu descobri que falar com a África era muito melhor do que falar sobre ela. E foi assim que aconteceu a coautoria com o escritor africano Mário Lemos, de Maputo, Moçambique. Embora não o conhecesse pessoalmente, estabelecemos a parceria ainda durante a pesquisa que eu desenvolvia a respeito das capulanas, tecidos muito especiais dessa região. Aliás, tecidos que falam ao estamparem narrativas por meio de linguagem simbólica, das cores, dos acontecimentos locais, que acabam como temas nas estampas. Durante as entrevistas, ele rememorava as capulanas das mulheres da família, guardadas em baús repletos de histórias. Havia tanta propriedade no relato dele a respeito do grafismo, da oralidade através dos contos que ele trouxe, dos costumes, de modo geral, em torno do pano e da forma como ele os reescrevia. Então eu o convidei para a coautoria da obra Capulana: Um pano estampado de histórias (Scipione). Depois chegou a ilustradora argentina, Vanina Starkoff, com as cores chamativas para o projeto. Abrir a janela para essa origem africana, pensando no desconhecimento que o Brasil tem de nichos culturais como esse, é uma forma de exaltar procedências culturais que passaram tanto tempo despercebidas.

A referência quando entra pelo coração desarma ódios e intolerâncias. Vale sempre, portanto, chamar a atenção para o quanto a leitura pode impactar na prospecção de um mundo mais saudável. A forma como se percebe o outro pela humanidade em comum impacta a percepção de si mesmo. Afinal, a relação entre literatura e infância é feita de versões por meio das quais se conta a história vista de nossas janelas. 

Heloisa Pires Lima

Heloisa Pires Lima é antropóloga, mestra e doutora pela USP. Foi pesquisadora do Instituto Camões-Cátedra Jaime Cortesão, em Portugal. A estreia no circuito editorial (1995) abrange a escritora, a editora e a pesquisadora da área. Como consultora, atua tanto na esfera pública, sobretudo MEC e SMEs, quanto privada (Canal Futura/Fundação Roberto Marinho). Também atua em organizações nacionais e internacionais com foco em educação. Pela SOMOS Educação, é coautora da obra Capulana: Um pano estampado de histórias (Scipione).

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