Literatura, leitura e bem-estar

Por Clara Ornellas - 13 mar 2019 - 8 min

Ficar em um quarto de hospital, angustiado com o tratamento, distante de casa e da família, não é algo fácil a ser enfrentado. Pensando nesse contexto, o Voluntariado Emílio Ribas (VER), do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (SP), oferece, entre outras iniciativas, o programa Leitura Solidária.

Por meio da leitura de diferentes gêneros, como contos, poemas, mensagens positivas, várias equipes de voluntários assistem os pacientes com momentos de estímulo e reflexão, que auxiliam no fortalecimento da autoestima. Além disso, os ledores  oferecem revistas, gibis e palavras cruzadas como instrumentos de distração para os momentos em que os pacientes estão sozinhos. O VER também disponibiliza um acervo de livros de diferentes gêneros para os que desejam uma leitura mais prolongada.

Minha experiência como voluntária de leitura vem demonstrando um aprendizado mútuo entre ledora e paciente. Trata-se de uma experiência singular em que se pode notar diretamente o poder da palavra na transformação do ser humano em dois âmbitos: o texto oral e o escrito.

Interação e leitura

Só o fato de adentrar na solidão do quarto e conversar com o paciente já permite observar sua satisfação ao notar que alguém demonstra interesse em saber um pouco sobre ele. Desse contato inicial por parte do ledor, cria-se um clima amistoso ao permitir ao paciente falar livremente sobre aquilo que deseja, tanto a respeito de sua saúde e da família, como de questões pessoais e profissionais, entre outros assuntos.

Na sequência, o ledor propõe a leitura, por exemplo, de um poema. O paciente costuma aceitar e escuta sempre com atenção, como se bebesse demoradamente cada palavra. E, ao final da leitura, seu rosto está mais radiante. Conversamos a respeito do texto lido e ampliamos, juntos, o olhar sobre o objeto literário e de outros tipos de texto.

Doa-se tão pouco e se recebe muito, pois alguém se sentiu melhor, ainda que por apenas uns instantes, com um simples gesto seu.

Ações como essa demonstram a importância da literatura e da leitura como elementos mobilizadores na construção de um contexto de estímulo para o ser humano no enfrentamento de suas vicissitudes. Dessa maneira, salienta-se o poder inerente à palavra como meio de integrar mediador e ouvinte, obra e leitor, por meio do contato com um universo plurissignificativo que conquista resultados reconhecidamente positivos na essência de quem tem a oportunidade de interagir com ou por meio da literatura. Ao promover semelhante alcance, nota-se o seu poder em prol de uma humanidade mais fraterna e interativa com o próximo.

Melhorar o mundo

Muitos escritores veem a literatura como um meio para melhorar as relações humanas e também para trazer reflexão ao indivíduo sobre suas angústias, proporcionando-lhe observar que algumas de suas questões íntimas são cabíveis de entendimento por outras pessoas.

Para Lima Barreto, por exemplo, um escritor deve atentar ao sentido de que sua obra precisa colaborar para uma sociedade mais justa e fraterna: “[…] difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si” (BARRETO, 1956, p. 33).

Essa aproximação com as adversidades humanas revela a necessidade de que, por meio da leitura, haja uma interação que propicie compreender melhor a si mesmo, ao outro e à sociedade.

Já para João Antônio, a necessidade do diálogo, inerente ao ser humano, deve ser o centro de uma escrita que se projeta como universal: “Existirá sempre no homem, quer seja dentro de uma cadeia, de uma favela, de um sanatório, a angústia de se dar espiritualmente e a angústia de ter, a necessidade de manter diálogos. Isto é irremovível no homem e aí está a parte realmente universal ” (ENTREVISTA…, 1978, p. 8).

Diálogos esses que se concretizam de diversas maneiras, tanto pela interação leitor e obra quanto de um voluntário em relação ao seu próximo. Pacientes de hospitais, crianças em situação de rua, populações em zonas de conflito, idosos em asilos: para todos, a leitura, individual ou compartilhada, oferece o contato com um universo para além da realidade adversa, da sensação de falta de lugar no mundo e da solidão.

Michèle Petit, antropóloga francesa, elucida esse ponto de vista ao destacar que o envolvimento com a leitura permite ao leitor/ouvinte perceber que suas aflições não são só suas: “Mitos, contos, lendas, poesias, peças de teatro, romances que retratam as paixões humanas, os desejos e os medos ensinam às crianças, aos adolescentes, aos adultos também, não pelo raciocínio, mas por meio de uma decifração inconsciente, que aquilo que os assusta pertence a todos” (PETIT, 2010, p. 116).

Logo, a percepção de mundo e da própria vida, proporcionada pela leitura, auxilia no entendimento daquilo que incomoda e traz sofrimento ao sujeito ao se compreender que outros já vivenciaram situações semelhantes. E o modo como lidaram com essas situações geralmente colabora para que o leitor/ouvinte elabore formas próprias para enfrentar a sua realidade. Melhora o indivíduo, portanto, melhora o mundo.

Do universal para o individual

Muitos escritores atentam para a necessidade de que sua escrita colabore com discussões a respeito do sujeito e de seus conflitos internos e sociais. Por isso, torna-se imprescindível que todos tenham acesso à oportunidade de contar com a leitura como meio de interação com o outro e consigo. Seja em termos de entender conflitos sobre os quais padece, seja para o necessário contato com a fabulação para extravasar a realidade cotidiana, como afirma o crítico Antonio Candido em O direito à literatura (CANDIDO, 1988).

É importante que os responsáveis e educadores estejam atentos para a formação do leitor, pois o encantamento pela leitura deve ser incentivado desde a infância. A criança, ao identificar o quanto o contato com a palavra escrita lhe permite extravasar seus sentimentos e indagações, terá no livro um grande amigo.

Se a literatura centra-se em questões humanas, ela está apta à compreensão dos anseios de todos, mostrando o positivo e negativo e a maneira como encontrar soluções ou, no mínimo, amenizar questões internas. O médico e escritor Moacyr Scliar atentou para a necessidade de uma postura criteriosa e compartilhada na formação do leitor:

Estamos no momento discutindo o papel que a literatura vai ter nas escolas e é muito importante que pais e educadores se deem conta de que o livro medeia uma relação humana. Quem recomenda um livro, quem lê para uma criança, quem discute um livro com uma criança está fazendo, ao fim e ao cabo, uma verdadeira psicoterapia. Literatura é mais do que o estilo, é mais do que a escola literária, é mais do que a denúncia. A grande literatura tem a ver com a condição humana e nesse sentido ela tem um papel cada vez maior no mundo (LITERATURA…, 2009).

A leitura para o ser humano, para o mundo e para a vida

Assim, em meio à era tecnológica, que traz distração, mas nem sempre reflexão de profundidade humana, a leitura continua a garantir seu espaço como elo fundamental entre o ser humano, o mundo e a vida. É necessário perceber, nesse exercício íntimo, ao despertar para as potencialidades de ações solidárias, como as oferecidas pelo Voluntariado Emílio Ribas (VER), que na interação com o outro se pode construir uma relação produtiva e fraterna com o próximo. Assim, pode-se construir, por meio do contato com a literatura, personalidades mais inseridas e identificadas, tanto humana quanto socialmente.

 

Referências bibliográficas:

BARRETO, Lima. Amplius! In: BARRETO, Lima. Histórias e sonhos. São Paulo: Brasiliense, 1956.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1988.

ENTREVISTA com João Antônio. Oráculo: Boom Literário da Abrahão de Moraes – Faculdade de Ciências e Pedagogia da Universidade Mackenzie, [S. l.], 1978.

LITERATURA e medicina: os livros têm a ver com a condição humana. Problemas brasileiros, [S. l.], n. 395, setembro 2009. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/5162_LITERATURA+E+MEDICINA. Acesso em: 12 mar. 2019.

PETIT, Michèle. A arte de ler: ou como resistir à adversidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

Clara Ornellas

É pós-doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autora de João Antônio, leitor de Lima Barreto (2011).

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