Literatura e Transdisciplinaridade

Por Fabio Weintraub - 25 mar 2020 - 7 min

Um dos primeiros problemas a enfrentar diante do desafio de desenvolver projetos inter ou transdisciplinares no contexto escolar é a ideia de uma hierarquia prévia segundo a qual o conteúdo de uma disciplina “principal” será complementado ou ilustrado com elementos de outra. Talvez seja a maneira mais tradicional e imediata de pensar a transdisciplinaridade: o professor de certa disciplina, sem promover alterações radicais no programa e na sequência de conteúdos/informações que deve transmitir, recorre pontualmente a elementos da outra como complemento, sem, contudo, alterar sua maneira de propor problemas e de construir o conhecimento com os alunos.

Nessa perspectiva, um professor de História que estiver falando do tráfico de escravos pode propor a leitura do Navio negreiro, de Castro Alves, ou de um poema de algum poeta árcade, se estiver tratando da Inconfidência Mineira. Da mesma maneira, um professor de Língua Portuguesa que tenha recomendado aos seus alunos de 7º ano O Caso da Borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida, um dos clássicos da série Vaga-Lume, pode também aproveitar a história policial protagonizada por insetos para convidar o professor de Ciências a falar um pouco sobre a metamorfose das borboletas ou sobre o mimetismo animal (na história de Atíria, o vilão, a borboleta Caligo, com manchas nas asas imitando olhos de coruja, comete seus crimes na surdina enquanto as suspeitas recaem sobre a ave de Minerva)[1].

Eis alguns exemplos de uso transdisciplinar da literatura que, seguindo a lógica do complemento, não promove alterações significativas na organização curricular nem na metodologia de ensino.

No entanto, para implementar a transdisciplinaridade em sentido forte, são requisitos indispensáveis a flexibilidade na organização curricular e a construção de projetos pedagógicos com base em situações concretas, que conectem os estudantes a práticas sociais e ao mundo do trabalho, segundo propõe a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, p. 479):

Para que a organização curricular a ser adotada – áreas, interáreas, componentes, projetos, centros de interesse etc. – responda aos diferentes contextos e condições dos sistemas, das redes e das escolas de todo o País, é fundamental que a flexibilidade seja tomada como princípio obrigatório. Independentemente da opção feita, é preciso destacar a necessidade de “romper com a centralidade das disciplinas nos currículos e substituí-las por aspectos mais globalizadores e que abranjam a complexidade das relações existentes entre os ramos da ciência no mundo real” (Parecer CNE/CEB nº 5/2011). Para tanto, é fundamental a adoção de tratamento metodológico que favoreça e estimule o protagonismo dos estudantes, como também que:

evidencie a contextualização, a diversificação e a transdisciplinaridade ou outras formas de interação e articulação entre diferentes campos de saberes específicos, contemplando vivências práticas e vinculando a educação escolar ao mundo do trabalho e à prática social e possibilitando o aproveitamento de estudos e o reconhecimento de saberes adquiridos nas experiências pessoais, sociais e do trabalho (Resolução CNE/CEB nº 3/2018, Art. 7, § 2º).

A flexibilidade e a remissão a demandas suscitadas pelo contato com problemas da realidade relacionam-se ainda à transversalidade dos temas previstos nos Parâmetros Curriculares Nacionais e à necessidade de uma abertura de todas as disciplinas “ao que as une e ultrapassa”, à “unificação semântica e operativa das acepções através e além das disciplinas, conforme se lê nos artigos 3 e 4 da Carta da Transdisciplinaridade (Unesco, 1994).

A literatura desempenha papel fundamental nessa abertura/unificação, como se l}e explicitamente no artigo 5 dessa carta:

A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o campo das ciências exatas devido ao seu diálogo e sua reconciliação, não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência interior.

Por fim, ainda no âmbito da carta, o artigo 11 menciona outras dimensões importantes ligadas à literatura:

[…] A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão do conhecimento. 

Assim, uma metodologia de ensino que, além de contextualizar e associar diferentes campos de saber a partir de problemas oriundos de situações concretas, valorize o conhecimento sensível propiciado pelo corpo, pela intuição e pelo imaginário, normalmente bastante considerado nas etapas iniciais de ensino e pouco a pouco  “secundarizado” em nome da abstração e especialização crescentes, implica não apenas o reconhecimento de componentes centrais da literatura e das artes, mas também seu potencial em todos os campos disciplinares, desde que se abandone a visão desses campos como “feudos cognitivos” onde a arte só pode assumir papel ancilar.

Para romper com esses feudos cognitivos e superar a visão da transdisciplinaridade pensada em termos de subordinação entre as disciplinas, talvez seja útil construir projetos pedagógicos a partir de problemas novos e específicos, em relação aos quais a contribuição de cada campo do saber não esteja definida de antemão. Estou lendo o livro extraordinário do neurobiólogo vegetal Stefano Mancuso, A revolução das plantas (São Paulo: Ubu Editora, 2019), encantado justamente com os trânsitos disciplinares que ele promove para falar de processos cognitivos do mundo vegetal, fazendo uso de conceitos (imagens, vocabulário) da arquitetura, da psicologia e da ciência política, entre outras coisas. É o que se vê, por exemplo, na ideia de “democracias verdes”, título de um dos capítulos do livro, em que Mancuso fala de processos coletivas nos quais as plantas, numa espécie de assembleia, avaliam, ponderam e tomam decisões – o que desloca a ideia de uma natureza regida pela “lei do mais forte”, que justamente levou a filosofia política a tomá-la como modelo para as oligarquias, não para as democracias. Graças a esse tipo de liberdade, é possível também pensar em aplicações dos achados em determinado campo de pesquisa em campos muito distantes (como a criação de sondas espaciais que imitem o comportamento das sementes do Erodium cicutarium, cujas sementes se espalham e perfuram o solo com um consumo mínimo de energia).

Penso nesses exemplos para imaginar projetos pedagógicos transdisciplinares que, abastecidos por uma liberdade semelhante, pudessem articular diferentes disciplinas não para referendar o consabido, mas para ampliar o nosso campo de visão. “Aprendi com meu filho de dez anos/ Que a poesia é a descoberta/ Das coisas que eu nunca vi.”, escreveu a certa altura o modernista Oswald de Andrade. Imagino então, para encerrar com outro exemplo, um projeto sobre preservação ambiental que reunisse professores de biologia, literatura e geografia dispostos a problematizar a retórica do desenvolvimento sustentável, confrontando-a com narrativas indígenas e com dados sobre desmatamento e poluição de rios em reservas indígenas e áreas de garimpo ou de barragens hidrelétricas. As narrativas indígenas poderiam oferecer subsídios para discutir outros modelos de relação com a natureza, que, em vez de conciliar o ideal desenvolvimentista com a necessidade de preservar os recursos naturais, servisse para por em questão a própria ideia da natureza como recurso e para questionar o imperativo do desenvolvimento.


[1] Sobre o uso dessa obra no ensino de ciências veja-se Santos, Fabiana Rodrigues. Detetive ou cientista? A literatura policial infantojuvenil como recurso didático na educação em ciências. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, Instituto de Física, Instituto de Química e Instituto de Biociências, 2013. 

Imagem de capa: Desembarque de escravos negros no Arquipélago de Santana, desenho de Harro Harring (1840). Crédito: Instituto Moreira Salles (IMS)/ GLAM Wiki