Ignácio de Loyola Brandão, imortal

Por Mário Vilela - 13 nov 2019 - 11 min

Como tantas cidades paulistas, Araraquara cresceu com o café, e o café trouxe a ferrovia. Duas, aliás. Numa delas, a Estrada de Ferro Araraquarense, fez carreira Antonio Maria Brandão, escriturário modesto que, porém, galgou todas as posições que lhe era possível subir ali. “Homem que lia muito, gostava de palavras, tinha vários dicionários”, recordou o filho Ignácio em outubro de 2019, ao ser empossado na Academia Brasileira de Letras. “Seus memorandos, afixados em todas as estações, eram lidos com prazer; ele escrevia curto, com humor.”

Nascido em Araraquara em 31 julho de 1936, o hoje imortal recebeu o nome de um dos santos do dia, o espanhol Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus. Costume de um Brasil ainda muito católico, mas coisa sobretudo da mãe, dona Maria do Rosário, catequista como era a mãe do futuro dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, conterrâneo, contemporâneo e amigo de Ignácio desde a infância.

Antonio Maria aconselhava aos filhos: “Aprendam palavras, e sua vida será mais fácil”. Ensinou-os a usar o dicionário e, quando voltava do trabalho, testava: “Que é bissinose? E inzoneiro? E protender?” Progressão natural, veio também do pai o amor aos livros, descobertos muito cedo, fossem infantojuvenis, fossem adultos adaptados para o público mirim. “Lembro-me de quando me deu uma versão para crianças do Robinson Crusoé, relata Ignácio na excelente entrevista que, às vésperas de completar 80 anos, concedeu a Luiz Rebinski para o jornal literário Rascunho (edição 195, julho de 2016).Fiquei fascinado e aterrorizado. A solidão de Robinson era apavorante.”

“Desocultem”

Naquela altura, já se alfabetizara com duas professoras, Lourdes Prada e Ruth Segnini, que seriam suas referências e amigas pela vida inteira. Em crônicas, artigos, livros, discursos, entrevistas, Ignácio nunca perde ocasião de mencioná-las. “Devo minha carreira a elas, que me ensinaram as primeiras letras. Mestras por instinto e paixão.” Ruth ainda vive, mas Lourdes morreu em 2018, quando ele então registrou:

Sem Lourdes Prada, eu não teria escrito 45 livros, viajado o mundo. Eu tinha nove anos. A professora Lourdes tinha dado o tema da redação. “Vão escrever sobre o bairro em que moram. Não quero historinhas bobas de cachorro na rua, briga de moleques, de quem namora quem. Contem um problema. Falem do que está escondido, do que as pessoas têm vergonha, medo. Desocultem.” Naquele momento recebi a primeira lição para um escritor ao longo da vida: desocultar. Eliminar o oculto, eliminar a sombra, o que não é visível mas nos afeta, incomoda, nos violenta.

Em entrevista ao jornal O Globo em julho de 2016, ele já comentava:

Quando os escritores falam de sua formação, citam Joyce ou Shakespeare. Não tive nada disso. Fui formado por meus professores e pelas histórias de aventureiros e corsários que amava ler. Para mim, literatura é narrativa. Meu avô contava histórias, minha tia contava contos da carochinha, tive um pai muito simples, um ferroviário pobre, que, no entanto, gostava de ler e me contava o que lia. Por isso me vejo como contador de histórias.

Para além dos livros, descobriu em Araraquara a paixão pelo cinema. “Fui um garoto magro, tímido, feio, introvertido”, conta a Rebinski. “Sofria bullying na escola e só tinha prazer quando sentava [na sala de exibição] e olhava a tela, me enfiando naquele mundo infinito.” Anos depois, ao se lançar na literatura e procurar um estilo, o que mais o influenciaria seria a linguagem cinematográfica, reconhece na mesma conversa.

Cinema era muito bom, mas não era de graça. O preço do ingresso pesava, ainda mais quando se era tão somente classe média baixa. Nos tempos de ginásio, tendo descoberto que crítico não pagava, ofereceu resenhas para A Folha Ferroviária, um dos jornais da cidade. Aceitas as resenhas, passou a ver filmes todos os dias.

Além do cinema, Ignácio se envolveu com o Teatro Experimental de Comédia de Araraquara, o TECA, que existiu de 1955 a 1962 e foi a criação personalíssima de Wallace Leal Valentim Rodrigues, culto e talentoso diretor local. Wallace traduzia, ele mesmo, as peças que montava de Shaw, Pirandello, Somerset Maugham, Noël Coward, Tennessee Williams. No prefácio a Histórias do TECA (2012), de Clodoaldo Medina, Ignácio relata que integrou o grupo nos dois primeiros anos:

Eu o vivi não como ator, nem como membro da equipe técnica. Fui uma espécie de assessor de imprensa, redigindo notícias, reportagens, artigos para os jornais da cidade. […] Era curioso como havia contágio entre os grupos. O pessoal do TECA se misturava ao da Escola de Belas-Artes, do Clube de Cinema, do Foto Cine Clube, da Escola de Ballet, do Conservatório, do Coral Araraquarense, do Centro Intelectual dos Jovens Araraquarenses. Efervescência, intercâmbio, enfim.

Em março de 1957, com menos de 21 anos, Ignácio deixou Araraquara. Seguiu para São Paulo não para cursar faculdade, mas para procurar emprego, com nada certo ou definido. Passadas umas duas semanas, um conterrâneo o levou para a redação paulistana da Última Hora, o diário getulista de Samuel Wainer, onde se tornou jornalista profissional.

Junto com o trabalho jornalístico, começou a produzir ficção. Em 1965, veio a estreia: os contos de Depois do sol, ambientados na noite paulistana. Mais três anos, e publicou o primeiro romance, Bebel que a cidade comeu.

“Então criei minha bomba”

Na literatura de Ignácio de Loyola Brandão, se Araraquara será a aldeia de Tolstói (“Queres ser universal?”, dizia o autor russo, “Então pinta a tua aldeia”), São Paulo se tornará o que Nova York foi para o romancista americano John dos Passos, ou Roma para o cineasta italiano Federico Fellini. Duas influências, em especial Dos Passos, que se mostraram fundamentais em Bebel, como Ignácio explica a Rebinski:

[Fiz uma reportagem] sobre o suicídio de uma promissora bailarina clássica, que se atirou de uma janela depois de descoberto que tinha câncer em uma das pernas e teria de amputá-la. […] Lendo Bebel, você encontra a São Paulo dos anos 1960 sendo modificada. A rua da Consolação inteira alargada, os bondes e trilhos sendo retirados, as putas nas ruas, os primeiros travestis, os inferninhos, os cinemas. Escrito após o golpe militar, ali está todo o ambiente, as informações em forma de notícia sobre o movimento subversivo, os atentados, as mortes. […] Bebel não foi parte de um projeto literário. Eu nem me considerava escritor; só queria sê-lo. Imagine, nem sabia o que era projeto literário. O que eu tinha era um projeto para aquele livro. Mas a estrutura dele foi ampliada, desenvolvida à exaustão e usada em Zero. Aí, sim, havia um projeto.

Zero começou a ser redigido em 1964 e teve a primeira versão concluída em 1973, ainda em plena ditadura. Transcorrendo “num país da América Latíndia, amanhã”, o cenário é muito claramente o Brasil daqueles anos, com direito a sequestro de embaixador, tortura, assaltos. “Um livro violento, de raiva”, diz a Rebinski.

Eu estava indignado, puto com os militares. Odiava a censura aos livros e à imprensa, que eu sofria diretamente. Como lutar? Ir jogar bombas? Pegar em armas? Não sou disso. Então criei minha bomba. Aquele livro foi minha bomba. Que estourou!

Era uma narrativa anárquica, nada linear, com inversões drásticas até na pontuação – interrogações e pontos-finais iniciavam frase. A disposição gráfica do texto foi também inovadora, um mosaico que hoje não nos causa tanta estranheza, habituados como estamos ao mundo virtual, multimídia, mas que 45 anos atrás era grande novidade na literatura brasileira.

Curiosamente, Zero foi traduzido e publicado na Itália, em 1974, antes de ter conhecido a primeira edição brasileira, que só aconteceu no ano seguinte. “Aí a ditadura levou um ano e meio para descobrir e proibir”, declarou ao Globo em 2016. “Enquanto isso, o livro foi lido. As pessoas às vezes dizem que Zero só vendeu bem porque foi proibido. Mas ele foi censurado há 40 anos e continua a ser lido – está na 40ª edição.”

Em 1976 – mesmo ano da proibição de Zero –, Ignácio lançou aquele que considera seu melhor livro, o romance Dentes ao sol. Era um regresso da metrópole para a aldeia, de São Paulo para Araraquara. Mais uma vez, a entrevista a Rebinski:

É o interior fechado, a vigilância de uns sobre os outros, as mentiras que corriam, as fantasias sobre determinadas pessoas, o mundo doentio de uma sociedade cheia de preconceitos, conservadorismo, fofoqueira, moralista, cada um fechado em si, desconfiado do outro. Será que a Araraquara do romance não é o mundo de hoje?

“Meu país absurdo se transformou em realidade”

Chegamos a 1981 e à obra mais vendida e mais traduzida de Ignácio de Loyola Brandão: Não verás país nenhum, o romance futurista de uma São Paulo e um Brasil distópicos.

Muita gente comparou a Admirável mundo novo [de Aldous Huxley]. Li, mas é diferente. Falaram de 1984. É diferente. Esse país sem árvores, sem água, o Amazonas como deserto, as cidades sob violência, as grades fechando edifícios e casas, câmeras de segurança, o sol e o calor matando as pessoas, foi invenção minha, exagerando os noticiários sobre o meio ambiente. Mas o meu país absurdo se transformou em realidade. A vida copiou a ficção. […] A violência da realidade superou tudo. Não verás hoje é róseo, ainda que cínico.

De lá para cá, Loyola Brandão publicou muitos outros livros. Só de romances, mais meia dúzia, sendo Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela o mais recente (2018). Coletâneas de contos e crônicas? São mais de uma dezena no total, sem contar os best-sellers infantojuvenis como O menino que vendia palavras (2007), que ganhou Jabuti e muitos outros prêmios.

Uma produção tão vasta e tão expressiva que, em 2016, a ABL lhe concedeu o Machado de Assis. É o mais importante prêmio literário brasileiro, que a Academia confere anualmente a um autor notável pelo conjunto da obra. Dois anos depois, morreu Hélio Jaguaribe, que ocupava a cadeira número 2 da ABL. Para sucedê-lo, os outros acadêmicos elegeram Ignácio – por unanimidade. Na cerimônia de posse, o escritor, 83 anos, brincou:

Eu deveria ser o décimo ocupante desta cadeira, cujo patrono é o poeta Fagundes Varela. Na verdade, sou o nono, uma vez que o terceiro eleito – Eduardo Ramos – não chegou a tomar posse, morreu antes. Também Emílio de Meneses, da cadeira 20, morreu antes da posse. Por favor, acadêmicos, aceleremos este ritual.

Não que Ignácio de Loyola Brandão tenha alguma intenção de partir ou mesmo parar. “No dia em que eu parar”, costuma dizer, “vai ser porque estou morto ou velho. E não estou morto nem velho.”

Conheça agora três títulos do nosso catálogo com textos do imortal

Acontece na cidade, vários autores

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Ao longo de trinta crônicas, escritas por grandes nomes da literatura brasileira, um painel da vida nos grandes centros urbanos, com seus problemas, seus personagens típicos, sua agitação.

 

As cerejas, vários autores

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O célebre conto de Lygia Fagundes Telles que dá título ao volume é recriado por cinco experientes ficcionistas (Duílio Gomes, Fanny Abramovich, Ignácio de Loyola Brandão e Márcia Leite), que o parodiam segundo seus anseios e inquietações.

 

Contos brasileiros 1, vários autores

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Antologia de contos na qual o Brasil é retratado em diferentes épocas e lugares por sete grandes autores, entre os quais Ignácio de Loyola Brandão. De um conto a outro, variam os cenários, os personagens, o estilo, o que oferece ao leitor um retrato do país à altura de sua complexidade e riqueza de aspectos.

Foto de capa: Johan Visbeek

Mário Vilela

Mineiro há muito não praticante, Mário Vilela se formou em Letras pela USP e em Jornalismo pela Metodista. No ramo editorial há mais de 35 anos, é redator, tradutor e copidesque.

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