Este nó na garganta

Por Mirna Pinsky - 19 jun 2020 - 5 min

Um tempo em que o mundo virou de cabeça pra baixo, esse nosso. Não bastasse a humanidade se ver derrotada por uma coisica invisível, agora o racismo, barbaridade sem nome, aflora com uma intensidade e um despudor absurdos. Não que ele estivesse em algum momento ausente. De formas diversas, cinicamente, ele nunca deixou de ser um “pilar” em diferentes culturas, manifestando-se por meio daquele olhar superior para as competências do outro, pela maneira sempre desconfiada de acompanhar o “diferente”.

Nos Estados Unidos, onde explodiram as atuais manifestações, o racismo sempre foi de um radicalismo atroz, e leis abjetas o institucionalizaram. Já o Brasil quis se enxergar como uma “democracia racial”, mesmo que o preconceito em relação aos negros continue exuberante. E, graças ao jeitinho brasileiro, sempre sinuosamente camuflado.

Depois de assistir, na semana passada, a um programa de televisão em uma conhecida emissora, com depoimentos de seis jornalistas negras de renome, relatando corriqueiras (e nem por isso pouco constrangedoras) situações de racismo, senti vontade de me voltar, mais uma vez, à Escola, essa frente que tem me recebido tão bem todos esses anos. Retomo, então, o assunto de um livro que escrevi no final dos anos 1970, depois de assistir como ouvinte a um curso sobre literatura infantil. A professora Fúlvia Rosemberg, da Fundação Carlos Chagas, coordenou uma pesquisa sobre literatura infantil, com amostragem de livros de 1955 a 1975 publicados no Brasil. A pesquisa deu ensejo a esse curso na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e ao excelente livro Literatura infantil e ideologia (São Paulo: Global, 1985), em que fica patente a veiculação de racismo e sexismo nos livros brasileiros daquele período.

Naquela altura da minha vida, egressa de criação de poemas na juventude, tinha começado a escrever histórias para minha primogênita. E tenho de confessar que foi com surpresa que aprendi no curso da professora Fúlvia que, nos textos para crianças, embarcavam mais elementos além dos diminutivos…

Valores culturais. Sem abrir mão do humor e da poesia na linguagem, e atenta para escapar do didatismo, comecei a ver com outros olhos a função das histórias para crianças. A função social das histórias para crianças. Ativei meu radar  e bastou olhar em volta para testemunhar pencas de situações preconceituosas com relação a negros.

Elegi então um viés cauteloso. Evitando ditar regras, bem cônscia da limitação pessoal frente ao imenso desafio, me pus a desconstruir a situação de uma criança de família negra, pobre, levada a se relacionar num ambiente novo e predominantemente branco. Como uma menina nessas condições navegaria em direção à construção da autoestima?

Nó na garganta foi publicado em 1979 e, nesses quarenta anos de estrada, teve mais de sessenta edições. O número de cartas de leitores que recebi todos esses anos, cartas de correio, foi imenso (e hoje sigo recebendo e-mails). Algumas são de cortar o coração, como a de uma garota do Paraná. Depois de contar que sua mãe preferia a irmã, que tinha pele mais clara do que ela, a garota me pede pra ir buscá-la para morar comigo.

Então o que me leva de volta ao livro neste momento é bater na velha tecla: a relevância de as escolas públicas e privadas se empenharem para enfrentar  o problema do racismo. É na infância que se organizam os valores culturais. É na infância que o arcabouço social se constrói. Piaget já ensinou isso há muito tempo, mas não é patente que isto esteja claro na Educação. É preciso retomar e reforçar os propósitos de uma educação inclusiva, democrática e antirracista. O sorrateiro bullying voltado para a meninada negra tem de ser trazido à superfície, examinado à luz do dia nas escolas de todo o país. Precisa ser discutido, debatido no nível de cada grupo.

Há que conscientizar as crianças, rever em classe e fora dela, o que subjaz a certos comportamentos; há que destrinchar todas essas ideias preconceituosas que alimentam práticas de discriminação, intolerância e violência. Práticas como a execrável recorrência a apelidos depreciativos da cor negra (urubu, negona, beiçudo), a ausência de harmonia nas relações escolares pautadas pelo modelo de beleza europeu (loiro de olhos azuis), tudo reforçado por imagens de muitos livros com o negro acorrentado na pilastra e na miséria. Há que trazer à tona os pressupostos equivocados que provavelmente a criançada nem desconfia que tem. Os depoimentos das jornalistas mencionados no início deste artigo deixam evidente essa cultura submersa.  Há que fortalecer a autoestima das populações socialmente vulneráveis.

Enquanto crianças forem constrangidas a aceitar como normais situações em que a cor da pele entra como fator de discriminação a serviço da manutenção da desigualdade e dos privilégios, continuaremos a ratificar essa mentira que persiste entre nós século após século.

Imagem de capa: Ilustração de Andréa Ramos para o livro Nó na garganta, de Mirna Pinsky                                                        

Mirna Pinsky

Formada em Jornalismo pela Cásper Líbero, com mestrado em Teoria Literária pela USP, Mirna Pinsky escreve para crianças e jovens há mais de 40 anos. Ganhou dois Prêmios Jabutis (1981 e 1995) e o Prêmio ABL infanto-juvenil (2014).

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