Entrevista com Luiz Puntel, autor de “Meninos sem pátria”

Por Coletivo Leitor - 10 set 2020 - 6 min

“Meninos sem pátria” é um romance que retrata o período do regime militar no Brasil, sob a perspectiva de um garoto que vivencia o exílio com a família. Publicado pela primeira vez em 1987, o livro tornou-se um clássico da Vaga-Lume, a prestigiosa série da Editora Ática. Em entrevista exclusiva ao Coletivo Leitor, o autor Luiz Puntel nos conta sobre a experiência de escrever e divulgar a obra.

COLETIVO LEITOR – Na apresentação do livro, você comenta sobre a “necessidade fisiológica que é o escrever” (p. 12-13). Por que era necessário para você escrever um romance sobre um período tão conturbado da história política brasileira?

LUIZ PUNTEL – A afirmação de que escrever é uma necessidade fisiológica relembra que, assim como nos alimentamos para manter nosso organismo funcionando, escrever alimenta a nossa criticidade, o nosso olhar e ver, e enxergar à nossa volta.

Quanto a ser necessário escrever um romance sobre o período ditatorial, a ideia veio em decorrência da Anistia aos exilados políticos, em 1979. Com a volta deles, houve publicações, entrevistas, depoimentos. Para escrever Meninos sem pátria, eu me baseei em um depoimento da Theresinha Rabelo, mulher do jornalista José Maria Rabelo, publicado no livro Memória das mulheres do exílio. No seu relato, Theresinha conta as dificuldades da saída clandestina do Brasil com filhos pequenos e a sua luta diária com a difícil situação.

A partir do seu relato é que escrevi o Meninos sem pátria. Portanto, não se trata de um livro reportagem, mas a leitura da odisseia da fuga do Brasil permitiu servir como fio condutor para uma narrativa ficcional.

CL – Em uma crônica publicada no seu site, você afirma que, embora seja ficção, Meninos sem pátria é baseado em fatos reais. Há algo de pessoal ou familiar nesses fatos?

LP – Os fatos reais, como ficou dito, é o depoimento lido no Memória das mulheres do exílio. Aliás, vale a pena ler o relato de Theresinha Rabelo e os outros que fazem parte da obra.

Este trabalho tem na internet, aqui.

CL – Em sua carreira como escritor, você já publicou mais de 10 livros. O que Meninos sem pátria tem em comum com seus outros livros?

LP – Os livros que publiquei têm uma tônica de analisar problemas sociais. Assim foi com a desapropriação injusta e indevida de terras de uma favela no livro Deus me livre. Assim também foi com a questão da greve dos boias-frias, no interior do Estado de São Paulo, ainda em tempos ditatoriais, no Açúcar Amargo. Assim foi com a questão de tráfico de bebês para o exterior, baseado em fatos reais, no Tráfico de anjos. Surpreendi-me muito ao ver, em recente reportagem televisiva, uma das sequestradoras em que me baseei para contar essa história estar livre, leve e solta depois de traficar mais de 200 bebês para Israel. Assim foi também com a ida de descendentes japoneses para o Japão, como dekasseguis, no livro Missão no oriente, ou a questão dos movimentos musicais da periferia no livro O grito do hip hop. Há outros, mas nestes, o enfoque era o de analisar, discutir nossas mazelas sociais.

CL – E qual o diferencial de Meninos sem pátria em relação aos demais livros que você escreveu?

LP – O diferencial é que o livro, na última campanha presidencial, foi tachado de agitador das massas, nocivo, um perigo para as criancinhas do colégio do Colégio Santo Agostinho, no Rio. O livro foi retirado da lista de leituras que os alunos já faziam há anos por causa da denúncia de pais e mães ciosos de que seus filhos não discutam as mazelas sociais brasileiras. A diretoria resolveu por bem acatar as reclamações, o ato de censura veio a público e a notícia correu o mundo. No dia seguinte, eu recebia contato de vários órgãos de imprensa do mundo todo querendo saber o que havia de tão tenebroso no livro. É só “dar um Google” pesquisando sobre a polêmica que se encontra farto material a respeito. Evidentemente, essas falsas acusações vieram no bojo da polarização política e da nefasta caça às bruxas.

CL – Em mais de 30 anos de publicação, Meninos sem pátria ainda hoje é um dos campeões de adoção em escolas Brasil afora. Você tem algum contato com essas escolas, recebe algum feedback dos alunos que leem seu livro?

LP – Quando falei da proibição do livro no Santo Agostinho, do Rio, causou-me surpresa porque o livro já estava na lista de leitura dos alunos. Ou seja, não se adota um livro hoje para ser lido amanhã. Ou seja dois: este livro, por mais de 30 anos, foi campeão de adoções. Viajei pelo Brasil todo falando dele e de outras obras. Nunca houve este tipo de postura tão autoritária, de franca censura. O livro é até lírico na sua forma de recontar o que houve em 20 anos de ditadura militar. Ou não houve ditadura, fechamento do Congresso, prisões, perseguições e mortes? Já cheguei, uma vez, no Rio mesmo, no Colégio Zaccaria, do lado do Palácio do Catete, a debater esta obra. Havia lá militares convidados e também exilados presentes. Foi um dia de cidadania, cada um com seu posicionamento, mas um respeito mútuo ligando todos nós.

CL – O que Meninos sem pátria significa para você?

LP – Todo livro que um autor escreve, que consegue fazer nascer, é como um filho. Esta frase é clichê, mas reflete bem o que sentimos pelas obras que escrevemos. E, como cada filho, cada livro tem uma pegada diferente, tem vida própria. Meninos sem pátria é tão querido como os outros, mas é diferente na narrativa, na formulação da visão crítica em relação aos tempos ditatoriais.

CL – E a Literatura, o que significa para você?

LP – Literatura é o olhar renovador. Olhar que olha para a realidade e a analisa, critica, passa a limpo e mostra a desigualdade econômica, a democratização incompleta – apenas formal –, o recrudescimento da cultura autoritária e tantas ou mazelas que vivemos. Mas também mostra certezas, decisões, acertos e desacertos. Literatura é ver o mundo com olhos de enxergar, como já disse, em outras palavras, Guimarães Rosa e tantos que se dedicaram a ler o mundo pelas lentes da narrativa.


Foto: Acervo pessoal

Autor de diversos livros da Editora Ática, Luiz Puntel é também diretor da Oficina Literária Puntel, escola de cursos de redação para vestibulandos, estudantes universitários e profissionais liberais. Além disso, ministra, há 35 anos, cursos de oratória, orientando pessoas a falarem em público.

Sempre escreve aos domingos no jornal ACidadeOn, além de ser muito ativo nas redes sociais.

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