E a escola, vale a pena?

Por Joice Lamb - 20 jan 2021 - 8 min

Em 2020, vivemos um filme do qual nos esqueceram de alcançar o roteiro. Tivemos que improvisar! E, como todo improviso, algumas nos saímos bem, outras não. Nem sempre fomos geniais. Adaptamos algumas cenas, mesmo que repetidas, para alimentar nossa sensação de controle. Depois de um tempo, acredito que alguns de nós conseguiram pensar um pouco a frente para escrever uma história, em vez de ser constantemente atropelado pelas narrativas de outros.

Na escola não foi diferente.

Todos os planos que tínhamos se esvaziaram. Em alguns lugares, em algumas escolas, as pessoas apenas transpuseram imediatamente esses planos para o espaço virtual. A questão era, a todo custo, não perder tempo, não perder conteúdo, não perder aprendizagem, não perder dinheiro. Nessa loucura, acabamos perdendo o elemento mais valioso: os estudantes.

A escola parecia aprender, na dureza do isolamento, as lições que tinha perdido ao longo da sua história. Quer dizer, tivemos a oportunidade de aprender, mas será que realmente aprendemos?

Em todos os lugares, professores, gestores, famílias e estudantes tentaram fazer o possível, deram o seu melhor para dar conta de uma situação inédita. Cada um de nós assimilou a situação a sua maneira. Eu aprendi algumas coisas em 2020 e gostaria de compartilhar com vocês. Talvez tenhamos tido entendimentos semelhantes. Talvez não. Vamos trocar algumas figurinhas.

A primeira coisa que entendi é que a escola obrigatória nos ilude. Antes da pandemia, pensávamos que a escola estava ótima, que os alunos nos adoravam, que todos acordavam pela manhã felizes e ansiosos para nos encontrar e beber avidamente da fonte do conhecimento. Durante o isolamento, perdemos nossos alunos. Perdemos as manhãs cheias de burburinho, as caretas de sono, os olhares fixos na nossa explicação. Chamamos nossos alunos por e-mail, WhatsApp, ClassRoom, Google Meets. E eles não responderam prontamente. Atrasavam-se para a aula e, quando compareciam, desligavam a câmera e iam fazer outras coisas enquanto a gente se “rasgava” tentando chamar atenção. Na primeira oportunidade, nossos alunos, principalmente os adolescentes, se libertaram da escola.

Tivemos a sensação de que os jovens não se interessam pelo aprendizado, não querem fazer parte do “futuro melhor” que nós tentamos vender, que são preguiçosos, desmiolados e não tem nada para dar ao futuro da nação. E também confirmamos que as “famílias” não se interessam nem um pouquinho na aprendizagem dos filhos. Seria isso mesmo?

A segunda coisa que entendi é que não podemos ceder a julgamentos como este do parágrafo anterior, ainda que a escola seja um ambiente repleto deles. A escola sempre fez basicamente duas coisas: tentava ensinar e fazia julgamentos sobre aqueles que não aprendiam. Eu digo que tentava ensinar, porque é público que a escola teve grandes fracassos em ensinar a todos com igualdade. Aqueles que não aprenderam da forma como foi ensinado, viraram estatísticas de fracasso escolar. Junto com as estatísticas vieram os julgamentos: a sociedade dizendo “vocês não ensinam” e a escola respondendo “vocês não aprendem”.

Apesar desse descompasso, com certeza, avanços importantes aconteceram durante as últimas décadas. Muitas escolas encontraram caminhos inovadores, muitas universidades investiram e formaram pesquisadores e muitos educadores solitários fizeram a diferença na sua comunidade. Porém, tudo isso ia indo em passo lento, e a última tendência para consertar a educação era apostar em grandes programas feitos por especialistas que os professores deveriam reproduzir nas salas de aula.

Com o fechamento das escolas e a distância intransponível, reduzida pela tecnologia e esmagadora sem ela, foi necessário olhar para tudo isso com outros filtros. Ao lado do medo e da angústia, também olhamos para tudo com empatia, solidariedade e esperança. Ao longo dessa pandemia, vi muitos professores mudarem o seu entendimento sobre o desempenho dos alunos, perplexos sobre realidades de vida que nunca haviam sequer imaginado. Quando mergulhamos na rotina doméstica dos alunos, enxergamos a desigualdade brutal que atravessa esse país e faz das crianças e jovens os mais vulneráveis.

Parece insensível dizer que temos que olhar para ese cenário como uma oportunidade. Por outro lado, pensar que vamos sair disso iguais também é um desrespeito com tantos que sofreram. Todos que conseguirem sair disso sem terem sido atingidos pelo sofrimento têm a obrigação de repensar o mundo.

A obrigação dos professores é repensar a escola, mas nunca sozinhos. Nossa obrigação é repensar a escola junto daqueles com os quais a compartilhamos. Junto dos estudantes e da comunidade local. Nossa obrigação é transformar nossa concepção de escola em um ambiente que realmente atenda a todos que dela necessitam. Nosso compromisso é com a escola democrática e inclusiva.

Mas, o que fazer com os sistemas, com as leis, com os currículos, com os planos e tudo mais? Eu posso dizer, com segurança, que nada disso é empecilho para a transformação escolar. Se olharmos com os olhos de todos, encontraremos muito mais soluções do que entraves, mesmo nas leis.

Em 2021, teremos que utilizar nosso aprendizado recente e criar um novo modelo para vencer mais um ano difícil. Vamos deixar o isolamento total e nos aventurar num sistema híbrido, formato completamente novo na escola pública. Não existe receita para colocá-lo em prática, e, os métodos sugeridos, elaborados às pressas por diversas instituições, não foram testados. De certa forma, cada escola lidará sozinha com essa experiência. Nunca antes tivemos essa oportunidade e não devemos deixá-la passar.

Eu também não sei muito bem o que fazer, mas penso que, primeiramente, precisamos ouvir e deixar falar. Alunos, famílias, professores e gestores precisam desse primeiro momento de diálogo. As perguntas principais deveriam ser iguais para todos: “O que eu aprendi?”, “O que eu quero aprender?” e “Como eu poderia aprender mais e melhor?”, priorizando a reflexão sobre o seu próprio aprendizado, e não apenas sobre como os alunos poderiam aprender mais.

Uma sensação que nos acompanha com o crescimento é a de que não aprendemos mais, e que nosso aprendizado (ou o não aprendizado) não faz diferença no aprendizado alheio. Leia de novo se você acha a frase confusa, porque é isso mesmo que eu quero dizer. Quem não aprende, não ensina. Grandes mestres já disseram isso. Infelizmente, pensamos que o entendimento disso é que quem não aprendeu, não consegue ensinar. E colocamos nosso aprendizado no passado, como uma tarefa cumprida. Esse modo de encarar a aprendizagem não transmite credibilidade para quem está ensinando. Reflexo disso são as tradicionais frases “eu aprendi assim, então todos podem aprender também” ou “não podemos fazer desse seu jeito, porque sempre foi feito assim”.

A partir dessa reflexão, poderemos construir um ensino híbrido que funcione na nossa comunidade. Como eu estou fazendo aqui, muitas pessoas estão escrevendo e falando sobre o tema. Leia, pense muito e converse mais ainda. Busque experiências de escolas democráticas no Brasil e ao redor do mundo e não fique, de maneira nenhuma, preso ao “currículo do ano passado”. Esse currículo não existe mais. Temos a BNCC para nos orientar, mas ela não previu uma pandemia. Não se preocupe se ela precisar ficar um pouco em segundo plano até que as pessoas reais que estão vivendo e fazendo a sua escola possam eleger o que é mais importante.

As leis, os planos e os sistemas devem ser nossos aliados, não nossos guias. O caminho de cada escola, aquele que pretende levar todos juntos, deve ser trilhado a partir da própria instituição e chegar tão longe quanto for possível. Dizem que, se não sabemos aonde queremos chegar, qualquer caminho serve. Tampouco encontraremos o caminho se não soubermos onde estamos. Essa bússola precisa ser própria, não emprestada. Vejam que se tivermos que chegar a algum lugar que nos disseram para ir, muitas vezes ficamos pelo caminho e chegamos atrasados ou nunca chegamos.

Uma escola democrática e inclusiva escreve seu próprio currículo, entende que os desafios são diferentes para pessoas diferentes e não se permite perder ninguém pelo caminho. Para cumprir esse desafio, cada escola tem ao seu dispor a mesma base curricular, escrita a muitas mãos e com uma qualidade inquestionável. Basta trazer o aluno e a sua comunidade para o centro. Vale a pena lutar pela escola pública, porque é uma luta histórica e constitutiva da nossa cultura enquanto povo. Nossos estudantes, os mais vulneráveis de quem falei no início, estão apenas esperando a oportunidade de ter uma escola que escuta, que entende, que inclui e que liberta. Melhor não perdermos essa oportunidade.


Imagem de capa: Imagem de Wokandapix por Pixabay

Joice Lamb

Joice Maria Lamb é professora da rede pública desde 1991. Já atuou em diversas funções nesse período: foi professora, diretora e coordenadora pedagógica.

Fez Magistério no Ensino Médio. É formada em Letras pela Unisinos, com especialização em Gestão Escolar e em Coordenação Pedagógica pela UFRGS. Participou como formadora dos programas federais Gestar II e PNAIC. Escreveu diversos textos para o Blog Gestão Escolar da Nova Escola desde 2017. Foi finalista, entre os 50, do Prêmio Educador Nota 10 em 2017, vencedora em 2019 e recebeu o prêmio de educadora do ano.

Mais posts do mesmo autor