Dificuldade de aprendizagem ou de “ensinagem”? Dislexia e preconceito

Por Marina Miyazaki - 08 abr 2020 - 6 min

Todos nós apresentamos dificuldades de aprendizagem de algum conteúdo ou habilidade em certos momentos de nossa vida. O que nos diferencia, entre outras coisas, é a forma pela qual aprendemos (ou desaprendemos) e organizamos (ou desorganizamos) o conhecimento adquirido; a maneira como preferimos (a muitos não é dada a oportunidade de descobrir sua preferência) estudar; o ambiente, o momento e, o estado emocional (de quem aprende e de quem ensina); o método usado por quem ensina para nos transmitir o conteúdo (ou para dele nos afastar); o tipo da avaliação (ou julgamento) a que somos submetidos e seus objetivos quantitativos e qualitativos (muitas vezes, usados apenas para excluir). Ainda que tudo isso possa afetar de forma negativa o processo da aprendizagem em sala de aula, é possível que, em outro contexto, um conteúdo transmitido de maneira mais atraente e acolhedora seja mais bem assimilado e colocado em prática. 

Cito o exemplo de um amigo que, quando criança, foi diagnosticado com a chamada “dificuldade de aprendizagem”. Na escola, mesmo tendo enfrentado adultos acometidos por um terrível distúrbio, a “dificuldade de ensinagem”, ele sobreviveu. Ao longo da vida, veio aplicando de forma criativa todo o processo de “desensinagem” de leitura e escrita vivenciado na escola, e atualmente, numa espécie de anarquismo, não escreve as letras, ele as desenha. É um typedesigner reconhecido e premiado.  

E essa conquista não deve ser usada como exemplo de meritocracia (“crença” de que a pessoa é capaz de prosperar apenas com esforço próprio, sem ajuda da família e da sociedade), pois não foi uma conquista individual, uma vez que meu amigo teve o privilégio de vir de família estruturada, de nunca ter passado fome, de ter feito faculdade sem precisar trabalhar ao mesmo tempo etc. Para desenvolver e explorar suas habilidades, ele teve todo um contexto favorável, que a maioria das pessoas não têm. Enfim, é uma exceção numa sociedade cujas escolas deveriam proporcionar meios para que todos tivessem oportunidades equivalentes, oferecendo novas formas de avaliação e valorização do aluno. 

Há também exemplos de aprendizados teóricos bem-sucedidos, porém, a prática parece deixar claro que nem sempre há falhas no processo de aprendizagem ou no de ensinagem, mas apenas falta de habilidade, pelo simples e óbvio fato de que nós não nascemos com aptidão para todas as áreas.  

Se todos fôssemos obrigados a estudar e viver de futebol, a maioria poderia até ter excelentes notas na prova teórica. Porém, se a escola tomasse como base para nos aprovar ou reprovar o desempenho do Maradona, o resultado da prova prática seria lastimável. A maioria esmagadora receberia o diagnóstico de distúrbio futebólico, o popular “perna-de-pau”. Para ficar mais didático, descreverei a disfutebolia como fazem com a dislexia. Essa grave dificuldade de aprendizagem em futebol é um transtorno e não uma doença, portanto, não tem cura.

A pessoa pode saber o que é uma bola, que precisa chutá-la para fazer gol, porém, quando é convocada a provar o conhecimento adquirido, a realidade cruel entra em cena, erro atrás de erro. Os mais comuns são: canelada, entregada, frango e gol contra. Sinto muito dar essa notícia, mas nem reunindo uma comissão de especialistas em disfutebolia(técnico de futebol, massagista, bandeirinha, juiz, maqueiro, professores de educação física, fisioterapeuta, neurologista, ortopedista, comentarista, narrador e torcedor) conseguiremos converter aqueles que sofrem esse transtorno em craques ricos e tatuados. 

Mas, para acalmar os corações dos pais fanáticos por futebol e os pós-doutorados em pernadepauzice, é importante dizer que, mesmo apresentando essas preocupantes características disludopédicas, muitos trabalham no ramo sem qualquer sinal de vergonha ou trauma. Ou vocês acham que os comentaristas e cronistas de futebol são exímios jogadores que preferiram falar de futebol em vez de jogar?

Seguirei com mais uma comparação estapafúrdia. Se a nossa comunicação fosse feita apenas através do canto, tudo nos leva a crer que os doutores da música nos reprovariam ao primeiro sinal de desafinação. Cantar no chuveiro, modalidade mundialmente aceita, seria proibido por decreto. E ainda bem que a cantoria não foi implantada como forma oficial de comunicação entre os humanos, pois hoje, mesmo aqueles que não possuem aptidão, os discantorespodem trabalhar com a música (e nem sofrem preconceito por isso): compondo, dançando, produzindo espetáculos ou apenas criticando. Inclusive, podem continuar cometendo suas desafinações no karaokê das nossas festas sem que sejamos contaminados, pois, assim como a dislexia, a discantoria não é doença.

Porém, no caso específico da leitura e escrita, aqueles que não tiveram acesso à escola, além das pessoas com dislexia e daquelas que se comunicam de modo informal (recorrendo às variantes linguísticas, afastando-se do uso normativo), ainda sofrem o preconceito linguístico por parte de certas autoridades acadêmicas. Mas a intenção aqui não é privar as crianças da oportunidade de dominar a norma e, sim, reivindicar critérios de julgamento que também levem em conta as intenções expressivas de quem fala e os muitos mundos por trás do que se escreve. Corrijam a nossa escrita, não o que somos. Assim, a partir do lugar de “pessoa com dislexia”, invoco a “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso, a fim de assinalar a principal necessidade de quem deseja aprender:

Vou te fazer um pedido

tempo, tempo, tempo 

Compositor de destinos

Tambor de todos os ritmos

Tempo, tempo, tempo, tempo

Entro num acordo contigo

Tempo, tempo, tempo…

O tempo é necessário para que cada criança conheça melhor a sua própria condição. Antes disso, é improvável que, sem levar isso em conta, outra pessoa possa estabelecer condutas, regras, métodos e receitas que façam sentido para os sujeitos da aprendizagem.

Definir, enquadrar e tachar crianças como “disléxicas” (entre tantas outras características, temos a dislexia, não somos disléxicos) pode impedir que desenvolvam seu potencial e sua criatividade. Sugiro que parem de nos tratar com termos “capacitistas”, como a banalizada “dificuldade de aprendizagem”, querendo nos transformar em vítimas, incapazes de interpretar sequer um texto. Terão mais sucesso no empreendimento se buscarem tratar as “dificuldades de ensinagem”; essas, sim, têm conserto.

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Foto de capa por Alyssa Ledesma on Unsplash

Marina Miyazaki

Marina Miyazaki, 53 anos, às vezes, 35 (não por querer ser mais nova, mas tem dislexia e de vez em quando troca os números de lugar), seguiu à risca o “protocolo” da vida: teve filhos, plantou árvore e escreveu livro. Até aí foi fácil, difícil está sendo criar os filhos, não deixar a árvore morrer e vender os livros

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