DIA MUNDIAL DO REFUGIADO: O MUNDO GLOBALIZADO E A CRISE DOS REFUGIADOS

Por Zé Mariano - 16 jun 2021 - 10 min

O MUNDO GLOBALIZADO E A CRISE DOS REFUGIADOS

O advento da globalização, durante as décadas de 1980 e 1990, integrou mundialmente o mercado internacional e o capital financeiro, desenvolvendo assim novas formas de interações culturais, sociais, políticas e econômicas. O fim da era soviética e a intensificação de relações globais em conflitos locais tornou o mundo contemporâneo uma constante exposição à diferença e à alteridade.

Um exemplo disso foi a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos, momento marcante da história do mundo globalizado exatamente por tornar evidente o conflito entre o embate cultural e político local, comprovando que é impossível analisar o fluxo global de capital econômico/cultural sem analisarmos os embates e conflitos econômicos, culturais e sociais.

Pois, então, onde entra a história dos refugiados nisso tudo? A história dos refugiados converge exatamente com o advento da globalização e com o conflito entre o local versus o global. É evidente que já existiam trocas e conflitos entre culturas locais e globais. Para além disso, também é evidente a existência de grandes fluxos internacionais de pessoas que, por motivos religiosos, étnicos e políticos, se viram obrigados a realizar intensos deslocamento em terra. O Brasil é um grande exemplo disso: tornou-se uma referência nacional, na América Latina, de nação aberta à imigração. A partir de 1808, às vésperas da independência, instalou-se um fluxo constante de chegada de europeus nas terras brasileiras. Após a abolição da escravatura, em 1888, em dez anos entraram no Brasil mais de 1,4 milhão de imigrantes das mais diferentes regiões do mundo.

Então, qual o motivo da afirmação que a história dos refugiados acompanha a história da globalização, uma vez que se comprova facilmente a existência de intensos fluxos globais de pessoas antes dos anos 1980? O que está em jogo aqui é um status social diferente e um distinto contexto histórico-social. Para melhor explicitar, é necessário falar de dois conceitos essenciais para entendermos a situação do refugiado: a identidade e o estado-nação.

A identidade é um elemento que sempre esteve presente nos estudos das ciências humanas. De alguma forma, sempre se falou, do iluminismo à contemporaneidade, sobre comunidades e coletivos de pessoas compartilhando produtos culturais e simbólicos, organizando-se por valores comuns. O famoso antropólogo Stuart Hall é perspicaz em identificar que o advento da globalização permitiu que antigas identidades que se aparentavam fixas e organizadas tornaram-se, agora, fluídas e descentradas. Nosso mundo atual, com o intenso fluxo global de pessoas e culturas, obriga-nos a experimentar um mundo multicultural. Ou seja, um universo no qual, cada vez mais, núcleos centrais nacionais estão deslocados pelo modelo global e planetário da troca cultural, fazendo com que as identidades e minorias nacionais não possam ser simples e facilmente apagadas da história ou sistematicamente silenciadas sem nenhum ato de luta ou conflito. 

Dessa forma, em um mundo globalizado, estamos em constante mobilidade de identidades, o que o filósofo Zygmunt Bauman caracterizou como o universo partido em fragmentos. Junto a uma constante midiatização das relações sociais, o mundo globalizado fez as identidades tornarem-se mais fluidas. Pessoas anseiam constantemente por identidades fixas e certezas universais, em um mundo que as obriga constantemente ao contrário. Se nos identificamos de uma forma na realidade social, muito facilmente podemos perder essa identidade e seguir em direção à outra – e assim sucessivamente. 

Junto a isso, temos a desorganização de outro elemento: o estado-nação. Sendo o estado-nação um produto coletivo, ou seja, uma imagem construída conjuntamente a partir de bens e produtos culturais compartilhados, transformado em um aparato legal e jurídico que permite o controle de sujeitos em espaço territorial específico, é de se esperar que qualquer elemento ou sujeito que fuja dessa imagem coletiva abale potencialmente a organização do estado-nação. 

O mundo globalizado, ao aprofundar suas trocas culturais e sociais, tornando o fluxo de pessoas e culturas um dado frequente em nossa sociedade, descentra todas as certezas e efetividades do estado-nação. Não podemos perder de vista os exemplos mais usuais na contemporaneidade: latino-americanos são uma questão constante para os países norte-americanos (principalmente para os Estados Unidos), árabes são vistos como inimigos pela Europa, bolivianos foram também encarados como inimigos pelo estado brasileiro. Constantemente, o estado-nação tenta reprimir identidades dispares para manter seu poder jurídico de controle.

Voltando aos refugiados, o que os torna elemento estruturante de nosso momento histórico atual? A imagem da pessoa refugiada é o maior exemplo da identidade multicultural e do descentramento do poder do estado-nação. O intenso fluxo global de minorias étnicas e religiosas descentra identidades nacionais e a própria constituição da imagem coletiva da nação. Todas as certezas identitárias tornam-se incertas e confusas, em um mundo em que o estado-nação não consegue mais silenciar vozes dispares. Da mesma forma, a crise dos refugiados desorganiza toda a ordem social de um estado-nação, uma vez que se torna obrigatório lidar com o elemento da alteridade.

Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), existem mais de 60 milhões de pessoas ao redor do mundo que são obrigadas a deixar seu país e sua cultura. Além disso, é frequente que os refugiados saiam de lugares com conflitos locais, raciais e étnicos. A própria ACNUR mostra que os três países de onde saem mais refugiados no mundo são a Síria, com 4,9 milhões de refugiados; o Afeganistão, com 2,7 milhões e a Somália, com 1,1 milhão. Não nos espanta, após tudo o que foi falado até aqui, que esses países sejam palcos de conflitos intensos entre interesses locais e globais – levando em conta que a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos desencadeou um dos maiores conflitos da contemporaneidade e um dos maiores deslocamentos populacionais no mundo.

Já o Brasil abriga mais de 45 mil refugiados, segundo o Comitê Nacional para Refugiados (Conare). Desses 45 mil, cerca de 38 mil são da Venezuela. Haiti, Cuba e países do continente africano também aparecem na lista. 

Atenho-me a esses dados para mostrar como a sociedade multicultural relaciona-se com as crises políticas e econômicas de uma sociedade globalizada – sendo esta, por sua vez, conectada a constantes crises de representações identitárias e nacionais. A situação dos refugiados, em escala global, é também uma dessas crises: excluídos do processo de identificação coletiva, não há outro caminho a não ser o grito para se fazer ouvido.

Para esse Dia Mundial dos Refugiados, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000, é essencial que olhemos para a nossa sociedade a partir do que a molda. Infelizmente, desigualdade e exclusão são elementos estruturantes de uma sociedade globalizada e essas características são facilmente perceptíveis ao observarmos a questão identitária e de pertencimento nacional para refugiados. A pergunta que nos devemos fazer é simples: como evitar que a diferença se torne uma ferramenta da exclusão? 

Judith Butler e Gayatri Spivak, em um famoso texto intitulado Quem Canta o Estado Nação, mostram um caso emblemático da história dos Estados Unidos. Noticiários do país mostravam-se indignados com um grupo de descendentes latino-americanos que cantaram o hino nacional dos Estados Unidos a partir de sua língua materna. O espanhol foi utilizado para mostrar a identidade nacional que compartilhavam entre si. Eles eram, sim, norte-americanos. Porém, não representavam o estadunidense usual, falante da língua inglesa com valores culturais “propriamente” estadunidenses. Pelo contrário, identificavam-se como norte-americanos exatamente por exercerem uma identidade multicultural construída nos interstícios das mais díspares identidades, em um espaço territorial no qual, minimamente, há trocas culturais o suficiente para uma imagem coletiva de um diferente país. Além disso, o elemento da identidade norte-americana não apaga o valor político da identidade latino-americana. Os sujeitos colocam-se no mundo partir de suas identidades não fixas e não essencialistas.

Um caminho para entendermos a crise dos refugiados talvez seja olhar para esse exemplo e permitir que esses povos cantem eles mesmos suas nações. Antigas ordens nacionais podem extinguir-se? Com certeza. Porém, uma nova configuração nacional pode existir, na qual o multiculturalismo tem potencialidade de não ser uma ferramenta de exclusão, e sim uma ferramenta de construção de uma sociedade igualitária.

Confira a seguir alguns títulos do nosso catálogo que discorrem sobre imigrações e pessoas refugiadas:

A outra face – história de uma garota afegã

Aos 11 anos, a afegã Parvana está em apuros. O pai foi preso e o irmão mais velho, morto. Como o Talibã não permite que as mulheres trabalhem, só resta a ela se disfarçar de menino.


A viagem de Parvana – mais histórias de uma garota afegã

Este livro é a continuação de A outra face. Viver entre escombros de edifícios, em condições miseráveis, sem poder estudar, relacionar-se, expressar-se e com medo de perder sua família para a guerra: esta é a dura rotina de Parvana, uma menina doce e prestativa de 11 anos, que vive sob a mira do regime e do poder de fogo dos Talibãs, no Afeganistão.


Meu nome é Parvana – outras histórias de uma garota afegã

No terceiro título da trilogia da menina Parvana, a valente garota afegã recomeça a vida junto com a mãe e os irmãos. Após a queda do Talibã, depois de ter perdido o pai e ter ido parar em um campo de refugiados, a família da menina decide construir uma escola só para moças. Mas eles acabam enfrentando o preconceito dos aldeões que não aceitam que mulheres estudem. Parvana continua a superar desafios para tentar sobreviver e para manter a família unida, ao mesmo tempo em que busca na leitura de romances e livros de poesia uma fuga para a vida tão sofrida. Escrito pela premiada autora canadense Deborah Ellis, a partir de relatos ouvidos no Afeganistão, Meu nome é Parvana encerra a trilogia sobre a comovente história de uma menina afegã.


Bibi e Kito

Um dia, Bibi se viu diante de uma situação embaraçosa com a chegada de Kito, um novo colega. Ele usa trancinhas, vem de outro país e não sabe falar português. Para ajudar, todos os amigos de Bibi não se esforçam para acolhê-lo. Inconformada, Bibi começa a pensar no que fazer para mudar essa situação.


Referências

ACNUR – ONU. Relatório do ACNUR revela 60 milhões de deslocados no mundo por causa de guerras e conflitos.

ACNUR – ONU. Dados sobre refúgio no Brasil.

BRASIL. CONARE. Refúgio em números. 5ª edição.

Zé Mariano

Zé Mariano é pesquisador e professor. Nasceu em São Paulo e cresceu em Embu das Artes. Formado em Letras, pela Universidade de São Paulo, é mestrando na área de Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa, pela mesma faculdade, lidando com temas como literatura afro-brasileira, literatura e identidades e construção social da masculinidade. Tem experiência na área de educação e coordenação de projetos, além de realizar formações presenciais para professores em torno de temas como literatura, educação e relações étnico-raciais.

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