DIA DA MENTIRA – “O CAMINHO É A VERDADE”

Por Gabriel Chalita - 31 mar 2021 - 8 min

O primeiro dia do mês de abril é vastamente conhecido como o Dia da Mentira. Sua origem data do início do século 16, quando o ano novo era comemorado em 25 de março e as festas de celebração duravam até o início de abril. Em 1562, o papa Gregório XIII instituiu o calendário gregoriano para todo o mundo cristão, e o início do ano passou a acontecer em janeiro. Entretanto, o rei francês Charles IX levou cerca de dois anos para seguir o novo decreto do papa. Além dele, os franceses que resistiram à mudança continuaram a celebrar a virada de ano na antiga data. Os adeptos do calendário antigo logo se tornaram alvo de brincadeiras, recebendo presentes engraçados e convites para festas inexistentes no dia 1º de abril.

Para refletir sobre o tema que dá nome a essa data, o Coletivo Leitor convida Gabriel Chalita, autor e professor de filosofia, para discorrer sobre a importância da verdade em todos os domínios da vida em sociedade. Boa leitura!

Quanta verdade há em uma flor que se abre!

Uma flor é, simplesmente, uma flor ou uma vida inteira escondida em seu significado. A verdade pode ser objetiva – uma flor é uma flor. Ou pode ser a interpretação de um coração – uma flor enfeita o mundo. Eis os olhos do sujeito que vê, que sente e que divide o que sente com o poder da palavra. A história da Filosofia é repleta de capítulos em que a verdade aparece como um problema conceitual instigante e desafiador. Apresentada como parte integrante de um sistema de valores, a verdade é o ingrediente básico dos modelos éticos e morais que pautam o agir humano, nas suas manifestações individuais e coletivas, desde o primórdio dos agrupamentos sociais.
Em hebraico, “verdade” guarda relação com o divino, a emunah, o absoluto. Ser verdadeiro, nessa tradição que é central para o Ocidente, é se aproximar do que é infalível, superior, referencial. No grego, por sua vez, “verdade” é aletheia, que é aquilo que se revela na sua inteireza, o que não é oculto ou dissimulado, o que está na essência. Na expressão latina, por fim, “verdade” aparece como veritas, ou seja, aquilo que é exato, preciso, o que corresponde à fidelidade das coisas e dos fatos. Da síntese desses três olhares sobre a verdade, foi construído o edifício ético e moral que hoje habitamos. Nele, a verdade se oferece como um farol iluminador. Que ajuda a ver, que ajuda a caminhar. Contemporaneamente, a verdade se intersecciona com outras dimensões dos problemas filosóficos. Martin Heidegger se debruça sobre ela em sua fenomenologia. Sartre e Simone de Beauvoir decidem existir em sua defesa. E, também, Jürgen Habermas, na teoria do agir comunicativo. A verdade é a autenticidade necessária para que o discurso seja correto. Sobre ela, Fernando Pessoa poetiza em “Tabacaria”:



Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

Triste a sensação de ter desperdiçado a verdade. De ter sido conduzido por dissimulações, fake news, mentiras. De não ter percebido onde havia a face iluminada pela verdade ou as máscaras deformantes da sua ausência. 

A verdade prossegue como tema relevante e desafiador em nossos cotidianos, na filosofia das ruas ou das casas, no pensar sem preguiça. 
Ela está presente na vida familiar e afetiva. Desejamos que nossos pais, irmãos, companheiros e filhos sejam sinceros conosco: não nos escondam nada e atuem, sempre que necessário, para fazer prevalecer a verdade e, com ela, a justiça. Pensamos o mesmo em relação aos nossos amigos, de quem não admitimos dissimulações ou mentiras. Aprendemos, desde cedo, que mentir é feio (moralmente reprovável) e errado (eticamente indesejável).

Ela é estruturante para o exercício da fé, a partir das verdades absolutas que se manifestam por meio de dogmas e que influenciam, decisivamente, o nosso alicerce moral.

Ela se revela em toda a sua inteireza na política, como uma expectativa que é socialmente partilhada: queremos que nossos representantes atuem guiados por esse mandamento superior, comprometidos com a retidão e com a transparência de suas ações. E que falem a verdade. É melhor um “não” verdadeiro do que o “sim” carregado de impossibilidades. 

Ela está presente nos tribunais. Nosso ideal de justiça está ligado de maneira íntima à procura da verdade real, cuja reconstrução buscamos com firmeza em processos cíveis e criminais.

Ela aparece, ainda, nas relações de consumo: ao adquirirmos um produto, esperamos que ele corresponda à perfeição a essência de sua imagem. Deve ter as mesmas dimensões e o mesmo funcionamento das propagandas. Em nome da verdade, contudo, somos capazes de subverter completamente o seu sentido e alcance. Da sua manipulação nasce a fofoca e o maldizer que corroem os afetos e geram desunião.

Das verdades ditas absolutas, vicejam abusos e violências praticados em nome de Deus. Da verdade de cada um, sem base factual e travestida de mera opinião, nasce a pós-verdade e a notícia falsa – ou fake news – que se prestam a fazer erodir o sistema democrático e a confiança nas instituições.
Sob o fundamento de que se está buscando reconstruir a verdade real nos processos judiciais, violações a garantias legais que estão na base da ideia moderna de civilização são praticadas sem constrangimento.

É por isso que, para termos compromisso com a verdade agindo como se este fosse um mandamento universal, não podemos agir como se esse fosse um fim em si mesmo. Evitar essa visão ingênua é fundamental para que não sejamos levados a condutas capazes de fazer mal a nós e às outras pessoas. Para tanto, é preciso pensar a verdade como um elemento cujo valor está precisamente na sua capacidade de absorver e incorporar outros caracteres importantes: a serenidade, a sensatez, a empatia, a polidez, o espírito público, o senso de coletividade, o respeito às leis e o rechaço a toda forma de fundamentalismo cuja adesão seja capaz de causar o sofrimento de outrem.

Devemos ser capazes de perceber as falsas oposições que nos cegam ao sentido transformador da verdade. Não há verdade sem liberdade. Não há verdade fora da solidariedade. Não há verdade alheia à democracia. Não há verdade com violência. Não há uma única verdade, mas não podemos chamar de “verdade” somente aquilo que convém às nossas crenças e valores. Não há verdade na mentira.

O percurso em direção à superação desses obstáculos coincide com a busca por uma vida emancipada. Por uma vida boa. Por uma vida que faça sentido a nós que somos gregários por natureza. Que crescemos no convívio com o outro. Que construímos nosso universo de significados coletivamente. O desafio, nesse sentido, é pavimentar esse caminho. A educação tem papel central nesse propósito. Ela se apropria da Filosofia como fonte inesgotável de discussões que seduzem por sua capacidade de gerar inquietação. E articula os saberes de modo a apresentar aos indivíduos os elementos que, dialeticamente, eles vão incorporar no seu agir.

Também a literatura e a arte são chamadas a dar a sua contribuição. A primeira, a partir das narrativas, da história dos sentimentos, das tramas que contam as vidas, que apresentam situações em que a verdade é provocada, questionada, buscada. A segunda por aguçar os sentidos que descortinam um mundo complexo e plural, convidativo ao pensar multidimensional, estimulante à descoberta do novo que se revela no estranhamento e na diferença.

Quanta verdade há em uma flor que se abre! Quanta verdade há em uma mente que se abre! Que se limpa das sujeiras, dos preconceitos e dos ódios para poder ver as flores tantas que se abrem por aí…

Gabriel Chalita

Gabriel Chalita é professor e escritor. Já publicou mais de 90 livros, entre eles O pequeno filósofo, O beijo do papagaio, O cãozinho sem nome e O peixe azul. Iniciou sua carreira docente aos 15 anos e nunca deixou a sala de aula. Já fez doutorado em Comunicação e Semiótica e em Direito, além de dois mestrados, em Sociologia Política e em Filosofia do Direito. Dirigiu várias instituições educacionais e ocupou importantes cargos públicos, entre eles o de Secretário da Educação e do município de São Paulo, o de Vereador de São Paulo e o de Deputado Federal. Além de professor dos cursos de graduação e pós-graduação nas faculdades PUC-SP, Mackenzie, IBMEC e Uninove, Chalita é membro da Academia Brasileira de Educação e da Academia Paulista de Letras.

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