Da tradução italiana de Quarto de Despejo

Por Coletivo Leitor - 12 ago 2020 - 12 min

Abro este meu depoimento com uma primeira reflexão: foi para mim um privilégio poder traduzir para italiano o Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.

O meu interesse pela escritora não é novo, em 2018 publiquei, pela Editora Alpes de Roma, a biografia Carolina Maria de Jesus. Una biografia ai margini della Letteratura. O livro foi apresentado numa pequena livraria do bairro Trastevere, em Roma, apinhada de gente. Pessoas díspares: brasileiros que viviam na capital italiana já há muitos anos, alguns que, recentemente, tinham se “autoexilado” por razões políticas, muitos romanos amantes da literatura e interessados pela América Latina. Poucos conheciam Carolina Maria de Jesus, mas foi extraordinário o interesse e a participação. 

Em 2020, pela editora portuguesa Colibri, a biografia foi traduzida e publicada, embora infelizmente ainda não lançada, por causa da pandemia, que, como sabemos, cortou as asas a muitos projetos, na Europa e no resto do mundo.

Entretanto, o fascínio das palavras e da personagem da escritora continuava a fazer o seu caminho dentro de mim, tanto que propus, de novo à editora Alpes, a tradução do primeiro diário da escritora, Quarto de despejo. E comecei o meu trabalho.

 Recordo que o texto foi já traduzido na Itália em 1962, pela Editora Bompiani e sob indicação do escritor italiano Alberto Moravia. Moravia teve conhecimento do livro durante uma viagem ao Brasil, por ocasião de um congresso literário. Ficou tão impressionado com a força literária da obra que a fez editar com o título Il Ripostiglio. Assim, ele escreve sobre Carolina:

O realismo da sua prosa simples, plana, clara, familiar nunca é naturalista: uma ironia sutil e difusa dá-lhe uma dignidade clássica. (…) A chave do sucesso de Carolina está mais uma vez no que chamamos o seu ideal de cultura. É evidente que para Carolina escrever é como rezar. Ela tem uma alma religiosa; mas da religião do nosso tempo, ou seja da religião da cultura.  

(Moravia, Alberto. Il Ripostiglio, prefácio. Milão: Bompiani, 1962)

Minha nova tradução do diário de Carolina tem a publicação prevista até o final de 2020, com o título La Stanza dei Rifiuti.

Em relação à tradução do título, gostaria de observar que o termo italiano “ripostiglio”, adotado na primeira tradução da obra para o italiano, não corresponde, segundo a minha opinião, ao significado do título original em português, pois a palavra significa “uma parte da casa onde se guardam coisas velhas”, mas não para as deitar fora, simplesmente para guardá-las, como um depósito.

Ao contrário, a expressão “rifiuti” significa “lixo”, algo que se deita fora. Conceito mais próximo, parece-me, do significado do original “despejo”.

O meu foi um trabalho de tradução árduo, não evidente, cheio de ratoeiras linguísticas e culturais, mas… extremamente gratificante. Permitiu-me entrar mais profundamente no universo caroliniano e ouvir mais forte a sua voz imperiosa, autoritária e comovente ao mesmo tempo.

Parece-me que o fundamental para um tradutor é constatar que um texto literário não é composto unicamente por signos verbais. Como ensinava Foucault, a literatura surge evidentemente de um âmbito verbal, mas também se levanta e se alonga na direção de outros signos muito mais complexos que os signos verbais. Na realidade, continua Foucault, a literatura constrói-se por meio de várias estratificações de signos, sendo profundamente polissemântica, e não no sentido de que pode ter vários significados e por isso ser ambígua, mas porque ela é obrigada a percorrer um determinado número de estratificações semiológicas, unificando-as verticalmente. Estratificações que existem todas, horizontalmente, na sociedade e na cultura. (Foucault, Michel. La grande Etrangére. Paris: Edition EHESS, 2013) 

Palavras que refletem perfeitamente o fascínio e, igualmente, as dificuldades que se apresentam a um tradutor dos textos de Carolina. Ou seja, o domínio das duas línguas, de partida e de chegada, não é suficiente, e o tradutor deve, obrigatoriamente, também conhecer e dominar as duas realidades culturais, só assim poderá chegar a uma boa prática de tradução.

Se é verdade, como afirma Claudio Magris, que traduzir é a melhor forma de crítica literária, porque por meio dela todos os “defeitos” do texto aparecem na sua plena evidência, e se é também verdade, como dizia Italo Calvino, que traduzir é a melhor maneira de ler um texto, o tradutor deve se aproximar do texto com um olhar crítico em primeiro lugar.

Assim, num trabalho de tradução, a primeira abordagem deve ser crítica, para que possamos entrar no mundo cultural representado pela obra. Mas imediatamente surge a questão fundamental: como traduzir, de forma literal ou livre?

Como sabemos, é uma querelle antiga, que vem do século XIX, quando a discussão acerca da tradução debatia a alternativa entre “feia mas fiel” ou então “bonita mas infiel”.

Os classicistas eram favoráveis à tradução naturalizada (em que o autor é transportado até os leitores, na língua deles) e os românticos favoráveis à tradução estranhada (em que são os leitores que vão ao encontro da língua do autor). Impossível não mencionar, a este propósito, o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin. O filósofo apresenta-nos uma outra perspectiva fascinante, essa também muito antiga: o conceito da língua perfeita e universal, ou seja, de uma língua pré-babélica. Que é “pura” e compreendida por todos os seres humanos.

As línguas, afirma Benjamin, são todas diferentes, mas há uma convergência entre elas: o impulso comum na direção de uma língua universal. E o ato da tradução permite a procura desta utopia: traduzir significa procurar o eco e a memória do texto original e da universalidade linguística. Por isso, defende Benjamin, como Goethe também defendia, a tradução deve ser o mais literal e transparente possível, não deve esconder o original.

Antes de entrar nos casos específicos da minha tradução, queria apenas salientar que as obras de Carolina entram, evidentemente, num panorama literário pós-colonial. Como pertencente à Literatura Marginal brasileira dos anos 1960/1970 e precursora da atual Literatura Periférica, Carolina impõe-se como uma voz importante no universo, tão rico e fecundo, da literatura afro-brasileira. E a tradução da sua escrita, qualquer que seja a língua de chegada, não pode fugir a esse contexto. A imagem do Brasil que sairá dela será sempre diferente e nunca “inocente”, terá sempre uma determinada conotação.

 O tradutor, no seu trabalho, deve levar em conta essas problemáticas, que têm a ver com o desenvolvimento das teorias dos Estudos Pós-coloniais e dos mais específicos Estudos Subalternos.

Em relação aos Estudos Subalternos, recordamos a importância das teorias de Gramsci, que teorizou o conceito de “subalterno” no panorama sociopolítico e cultural. Para Gramsci, os colonizados são subalternos, nos países do Terceiro Mundo, mas também no sul da Itália, regiões que ele considera como colônias do norte.

Chegando à minha tradução para italiano, vou sintetizar, muito brevemente, as dificuldades que encontrei ao longo do trabalho.

A primeira, e não poderia ser de outra forma, foi a questão dos “erros” linguísticos. Alguns especialistas de Carolina sugerem que o próprio Audálio Dantas, que “descobriu” a escritora na favela de Canindé nos finais dos anos 1950, teria feito uma primeira correção do diário, eliminando alguns erros e até cortando algumas partes mais polêmicas, onde Carolina atacava duramente a classe política e institucional de então. Mesmo assim, os desvios em relação à norma padrão continuam presentes no texto original, em nível ortográfico, gramatical e sintático. A minha escolha foi a dos classicistas já mencionados, pensei no leitor italiano e resolvi levar o autor até ele, ou seja, resolvi corrigir o texto.

Por conseguinte, na minha tradução, desapareceram os erros gramaticais e ortográficos, mantendo-se, entretanto, a mesma sintaxe e, quando possível, encontrando o equivalente das expressões idiomáticas.

A segunda dificuldade surgiu com as formas de tratamento. No português do Brasil, e também de Portugal, há toda uma hierarquia de formas de tratamento que não existe na língua italiana. No italiano, existe o amigável “tu”, o mais formal “lei” e o “voi” para o plural. Lembramos que essa regra é válida em todo o território italiano, para a língua escrita. Na língua oral, nas regiões do sul da Itália ainda se prefere o “voi” (herança do domínio espanhol) ao “lei” como forma de cortesia. Na língua escrita, contudo, a forma de cortesia feminina é simplesmente “lei” ou “signora”, a masculina é “lei” ou “signore”, sendo normalmente mais utilizada a expressão “lei”.

Muitas vezes, por isso, quando no texto original aparece a expressão “a senhora” ou “o senhor”, traduzi simplesmente com “lei”.

No caso da expressão “dona”, preferi deixá-la, como marca do original.

A terceira dificuldade, mais cultural do que linguística, teve a ver com a tradução da palavra “preto”. No italiano moderno, há duas palavras, “negro” e “nero”, a primeira tendo uma conotação claramente racista. O problema é que em Portugal, atualmente, a palavra “preto” também tem conotação racista.

Era interessante refletir sobre o percurso desta palavra em Portugal, onde só recentemente a palavra “preto” assumiu conotações racistas. Antes da revolução de 1974 e do fim do colonialismo, a palavra não tinha esse significado.

Mas achei errado pôr na boca da Carolina palavras racistas, assim optei sempre pela palavra “nero”.

Uma última dificuldade surgiu em relação a algumas partes do texto mais “opacas” do que outras, algumas ligadas a expressões idiomáticas de difícil compreensão para um não brasileiro. Dou um exemplo: logo no início do diário, no dia 16 de julho, Carolina escreve:

Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu.

Consultei amigos brasileiros, que também ficaram perplexos, finalmente traduzi assim, de forma literal, mas, confesso, com algumas dúvidas:

Mi sentivo male, ho deciso di farmi il segno della croce. Ho aperto la bocca due volte e mi sono accorta che si trattava di malocchio. Il malessere è passato.

Neste caso, só mais tarde percebemos o nexo existente entre o bocejar e o mau-olhado (ou quebranto). O bocejar constante seria um dos sintomas do mau-olhado:

As comadres sabiam rezar crianças com mau-olhado e pessoas doentes. Quando se abria a boca desmesuradamente e por várias vezes, como acontece no bocejo do sono, imaginava-se logo um mau-olhado do adulto. Os olhos caiam nos cantos e as pálpebras ficavam pesadas. Sonolência, corpo dolorido.

(Araújo, Iaperi. A medicina popular. 2. ed. Natal: Nossa Editora/Fundação José Augusto, 1985. p. 31)

É um pequeno exemplo, mas que ilustra, mais uma vez, a importância do contexto cultural no trabalho de tradução. Foi interessante também o confronto com a primeira edição italiana, da Bompiani, e com a edição francesa, publicada com o título Le Dépotoir, pela editora Stock.

Algumas notas em relação à edição italiana da Bompiani:

A tradutora prefere, na sua versão, traduzir “preto” como “negro”.

Em alguns casos, a palavra portuguesa não é traduzida, como no caso da expressão “peixeira”, que eu traduzi como “coltello”.

Quanto à versão francesa e à problemática criada pela palavra “preto”, a tradutora prefere, como foi o meu caso, utilizar a expressão “noir” e não “nègre”, que teria uma conotação racista.

No que se refere à recepção esperada para o livro de Carolina na Itália, é difícil prever, considerando também o momento difícil que todo o mundo editorial está a atravessar durante esta pandemia. Mas a recepção muito positiva que tivemos em Roma, como já recordamos, no lançamento da biografia da escritora, faz-nos esperar que o livro será bem recebido no mercado italiano. O nome de Carolina é pouco conhecido, mas, na Itália, houve sempre grande interesse pela literatura brasileira.

Há também outra razão que queremos salientar. Carolina vivia numa situação de marginalidade, sendo, a nível literário, uma grande protagonista da Literatura Marginal. Fato que nos faz pensar no importante escritor e cineasta italiano Pasolini, igualmente durante décadas “marginalizado”. Pasolini, por sua homossexualidade e radicalidade política, era considerado na Itália um “escritor maldito”. Mas não agora. Neste momento, assistimos a uma reavaliação de Pasolini, quer de um ponto de vista de criação artística, quer como teórico, nomeadamente na área literária. Uma voz como a de Carolina, ela também tão radical e fora de qualquer cânone, poderá ter o mesmo sucesso? É uma hipótese, mas acreditamos que sim.

Em conclusão, traduzir o diário de Carolina foi difícil, mas estimulante. Foi uma aproximação a muitas temáticas: linguísticas, literárias, sociais, políticas… Uma aproximação ao poliédrico e fascinante universo brasileiro.


Participe do debate comemorando os 60 anos do lançamento de Quarto de despejo, dia 13 de agosto, com a presença da escritora Conceição Evaristo, Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, e da pesquisadora Fernanda Miranda, com mediação da editora desta nova edição, Andreia Pereira, e da apresentadora do programa “Café Filosófico”, Flávia dos Prazeres.

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Rita Ciotta Neves nasceu em Roma, em 1949, onde se formou em Letras, na Universidade La Sapienza. Desde 1980 vive em Lisboa. Foi docente de Italiano na Universidade de Coimbra e, no âmbito do programa Erasmus, nas Universidades de Perugia, Arezzo e Lecce. Além da biografia sobre Carolina Maria de Jesus e da tradução de Quarto de despejo para o italiano, a autora também publicou Italo Calvino: Lições de Modernidade (Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2007)  e Gramsci: a Cultura, os Subalternos e a Educação (Lisboa: Edições Colibri, 2016).