Canções na BNCC e as lições da fantasia

Por Ramon Nunes Mello - 09 out 2019 - 10 min

Hoje é domingo, pede cachimbo / Cachimbo é de barro, bate no jarro / O jarro é fino, bate no sino / O sino é de ouro, bate no touro / O touro é valente, machuca a gente / A gente é fraco, cai no buraco / Buraco é fundo, acabou-se o mundo!” 

A infância tem suas memórias musicais, conhecidas por quase todos que tiveram contato com brincadeiras de roda, na escola ou em outros espaços de convívio e lazer. Você já ouviu ou cantou esses versos? 

O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem”.

Quem se lembra dos ritmos que marcaram o começo de nossas vidas? É difícil esquecê-los quando o aprendizado musical se reveste de caráter lúdico, marcando afetivamente as lembranças mais remotas. 

Desde cedo, brincar é aprender, e vice-versa. Talvez por isso as brincadeiras com música, na Educação Infantil, além de pavimentar o caminho para a leitura, conectam o aprendizado da palavra escrita à percepção dos sons, da cadência, do ritmo. No contexto escolar, a música pode representar mais do que um simples recurso pedagógico, contribuindo também para estabelecer o equilíbrio e o bem-estar das crianças, para estimular seu desenvolvimento cognitivo, a qualidade da memória, o raciocínio linguístico e a imaginação.

Brincar para aprender

Um exemplo bem-sucedido desse aprendizado lúdico pode ser encontrado no livro Quem canta seus males espanta, organizado pela educadora Theodora Maria Mendes de Almeida. A primeira edição, que reúne canções e parlendas (as singelas rimas infantis da literatura popular oral e do folclore brasileiro), foi publicada pela editora Caramelo em 1998, acompanhada de ilustrações e gravações das músicas (reunidas em CD) executadas por crianças. O livro foi fruto de uma pesquisa e de um trabalho desenvolvido com os alunos das escolas Bola de Neve e Hugo Sarmento, em São Paulo, mas extrapolou os muros dessas instituições.

“O resultado do trabalho com as cantigas de tradição oral tem sido bastante positivo. As parlendas beneficiam a memória, desenvolvem a sociabilidade e promovem um aumento do repertório cultural e do vocabulário das crianças. Quando elas descobrem que os pais e avós sabem cantar essas músicas, mesmo que em versões diferentes, ficam felizes e se interessam em aprender mais. A música é capaz de criar uma relação afetiva entre os alunos e as histórias compartilhadas nos livros. É emocionante presenciar a longa vida de uma obra que encanta diferentes gerações por duas décadas”, afirma Theodora em depoimento exclusivo para o Coletivo Leitor.

A própria passagem do texto oral para a página escrita pode dar lugar a conversas desafiadoras com as crianças. Hoje é domingo, “pé de cachimbo” ou “pede cachimbo”? O que faz mais sentido, arrumar um tempo para pitar no dia em que não se trabalha ou descansar ao pé de uma estranha árvore, o “cachimbeiro”? O que é mais divertido? Como o mesmo som pode ser escrito e entendido de formas tão diferentes? 

As duas décadas de existência do primeiro volume de Quem canta seus males espanta, completadas no ano passado, atestam o duradouro interesse despertado pelo livro. Em conversa com o Coletivo Leitor, Cauê Leme, ex-aluno da escola Bola de Neve e um dos participantes da coletânea (em 1998, ele tinha apenas cinco anos), relembra que o canto, a dança e o desenho já faziam parte da sua rotina escolar, o que favoreceu o desenvolvimento de seu interesse pela leitura.

“Guardo na memória o tempo em que participei da gravação dos poemas e a felicidade de ver o livro pronto. Eu lembro que o professor de música levou o piano no dia do lançamento, para que pudéssemos cantar. Eram cantigas como “Sapo cururu” e adivinhações como “Toalha molhada”, com jogos de palavras. Fico feliz por saber que o livro chegou até outras crianças, prova de que se trata de um trabalho capaz de impulsionar o gosto pela poesia e pela música”, conta Cauê, hoje formado em Relação Internacionais, pós-graduando em Arquitetura e Geografia.

Luca Noto tinha apenas 4 anos quando participou do projeto. Hoje, estudante de engenharia no Insper, reconhece que embora não tenha direcionado sua vida para uma área mais artística, a experiência de ilustrar e cantar as músicas foi muito importante: 

“Minha memória desse episódio é vaga, eu era muito criança. Mas tenho consciência de que a experiência foi relevante na minha formação. Ela me deu um repertório que possibilita uma leitura diferente da área em que atuo”, declara.

Em sua primeira edição, o livro foi reverenciado por ninguém menos que Ignácio de Loyola Brandão, atual membro da Academia Brasileira de Letras, que comentou a obra em sua coluna no jornal O Estado de S. Paulo (“Brincando de Médico”. São Paulo, 21 mar. 1999). Na crônica, o escritor criticava a cultura de massa televisiva dos anos 1990, destacando a importância do resgate de cantigas e brincadeiras de rua promovido por Theodora. 

Após o elogio de Loyola Brandão, em 2000 apareceu um segundo volume da obra, com posfácio assinado pelo escritor, trazendo outras canções populares, igualmente ilustradas e interpretadas por crianças.

Aprender com a música

Livros como Quem canta seus males espanta estão em consonância o texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que defende a compreensão de leitura em sentido amplo, para além do texto escrito. As Competências Gerais da Educação Básica buscam estimular o desenvolvimento de diferentes linguagens (verbal, corporal, visual, sonora e digital), incluídas as de natureza artística, a fim de “partilhar informações experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos, e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo”. 

Na Educação Infantil o trabalho com canções e textos rimados está previsto desde muito cedo. Com bebês já se busca explorar “sons produzidos pelo próprio corpo e com objetos do meio ambiente” (EI01TS01) e usar diferentes fontes sonoras “para acompanhar brincadeiras cantadas, canções, músicas e melodias” (EI01TS03).

Com crianças bem pequenas, busca-se “identificar e criar diferentes sons e reconhecer rimas e aliterações em cantigas de roda e textos poéticos” (EI02EF02). Para crianças um pouco maiores, menciona-se como objetivo de aprendizagem a invenção de “brincadeiras cantadas, poemas e canções, criando rimas, aliterações e ritmos (EI03EF02), entre outros exemplos.

No Ensino Fundamental diversas habilidades prosseguem nessa exploração da musicalidade, propondo “identificar e (re)produzir, em cantiga, quadras, quadrinhas, parlendas, trava-línguas e canções, rimas, aliterações, assonâncias, o ritmo de fala relacionado ao ritmo e à melodia das músicas, e seus efeitos de sentido” (EF12LP07) e “cantar cantigas e canções, obedecendo ao ritmo e à melodia” (EF02LP15). 

 A intenção do texto da BNCC é justamente nortear o trabalho das escolas, tendo em vista um aprendizado integral que engaje o corpo e a voz, que inclua a imaginação e a criatividade. 

O poder da imaginação

Por meio de jogos e brincadeiras as crianças desenvolvem seu imaginário. Graças ao faz de conta, aos mundos inventados, vestindo a pele de algum super-herói, agindo como animal mítico, princesa, monstro, bruxa ou fada, os pequenos aprendem a lidar com as emoções e a construir um repertório simbólico para enfrentar os problemas com que se defrontarão ao longo da vida.

Para a escritora Jô Duarte, autora Ana Pijama no País do Pensamento, um dos títulos mais vendidos da coleção Vaga-lume Jr., que em 2019 também completa uma década, a imaginação é a “fagulha primeira” de suas histórias. Não por acaso, sua protagonista, a menina Ana Pijama, acompanhada por Tropeço, estabanado cavalo de uma asa só, é capaz de transformar os pensamentos em realidade, ou até mesmo em país “cheio de imagens inventadas, como um lago de milk-shake de morango, areia de paçoca, nuvens de algodão-doce”. 

Em entrevista especialmente concedida ao Coletivo Leitor, Jô Duarte afirma que “toda criança é mestre na arte de imaginar”, a qual nos habilita a ler o mundo e a interagir com ele. Afirma a autora: 

“Muitas brincadeiras dependem fortemente do livre exercício da imaginação, por meio da qual um cabo de vassoura vira cavalo, um monte de areia vira um castelo. Acho que a criança aprende e apreende o mundo comparando seu universo inventado com o que o que a rodeia de verdade.” 

A fabulação pode ser o espelho da criança, um território de liberdade, desde que na infância pais e professores assegurem um lugar à fruição estética, propiciando o contato da criança com a literatura e as artes, em especial com a música. Assim a experiência de alteridade pode marcar a subjetividade infantil, possibilitando a construção um olhar mais sensível e afetivo na vida adulta. 

E se pudéssemos inventar um novo país, como ele seria? 

“Meu país seria governado por um ministério de crianças, adolescentes, adultos e idosos. Todos deveriam passar por testes infalíveis de honestidade e ter bom coração. Em cada quarteirão, haveria uma escola, uma praça cheia de árvores, um posto médico e uma padaria com biblioteca. Cada pão vendido seria acompanhado por um livro. Alimento para o corpo e para o espírito. Também haveria abrigos cinco estrelas para animais abandonados. Ou melhor, nem haveria animais abandonados.  Ah, se é para inventar, vou longe!”, finaliza Jô Duarte.

Conheça os livros que marcaram diferentes gerações 

Quem canta seus males espanta 1, de Theodora Maria Mendes de Almeida

Quem canta seus males espanta

 

Cantar ainda é uma das brincadeiras mais divertidas para as crianças. Neste livro você encontrará as mais belas canções e parlendas do folclore brasileiro. Os versos são ilustrados por crianças, que também interpretam as canções, reunidas no CD que acompanha a obra.

Quem canta seus males espanta 2, de Theodora Maria Mendes de Almeida

QUem canta seus males espanta 2

Após o grande sucesso de “Quem canta seus males espanta vol. 1”, lançamos o segundo volume, inclui trava-línguas e adivinhas. Com capa cartonada e páginas coloridas em papel cuchê, acompanha o livro um CD com canções inesquecíveis.

Ana Pijama no País do Pensamento, de Jô Duarte

Ana Pijama no país do pensamento

Ana Pijama nunca gostou de perder tempo dormindo. Mas, quando descobre o poder da imaginação, ela começa a ir para a cama bem cedo e cria o País do Pensamento, para onde vai todas as noites. Lá, conhece outra Ana, igual a ela. Só não esperava que a Dama dos Maus Conselhos invadisse seu mundo imaginário… 

 

Ramon Nunes Mello

Ramon Nunes Mello (Araruama/RJ, 1984) é poeta, jornalista e ativista dos Direitos Humanos. Mestre em Literatura pela UFRJ, é autor dos livros de poemas Vinis mofados(2009); Poemas tirados de notícias de jornal (2012) e Há um mar no fundo de cada sonho (2016), entre outros títulos.

Foto: Ricardo Fujii

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