Cancelar ou não: será essa a questão?

Por Januaria Cristina Alves - 19 ago 2020 - 6 min

Ao sentar para escrever esse artigo uma lembrança de infância me veio à memória. Eu cresci numa cidade do interior de Pernambuco, numa rua sem saída e, para minha alegria de filha única, com seis outras crianças da minha idade na vizinhança. Naquela época era muito comum se brincar na rua – bons tempos, não posso evitar de dizer! —  e como dizia Florestan Fernandes em seus estudos sobre as “Trocinhas do Bom Retiro”, na cidade de São Paulo, era lá que a gente começava a aprender as regras da vida em grupo, microcosmo da sociedade. Era na rua que a gente exercitava o debate, os combinados que deveriam ser respeitados, a falar para expressar nossas ideias e pensamentos e a ouvir o outro. Ao escolher a brincadeira que iria acontecer naquela tarde passávamos pela discussão de qual delas seria a mais divertida, pela aceitação da escolha da maioria, aprendíamos a argumentar, a defender nossas ideias, a compreender as dos outros sem destruí-las, e com isso, brincávamos todos juntos. Brigávamos também, é claro, mas no final do dia íamos para casa sujos e cansados, além de muito felizes pelas experiências aprendidas e compartilhadas.

O episódio que me veio à mente ao escrever sobre essa tal de “cultura do cancelamento” aconteceu quando uma das meninas da turma cismou em não aceitar a decisão da maioria, brigou com todo mundo, disse uns desaforos daqueles cabeludos e saiu batendo o pé. A brincadeira daquela tarde, não preciso nem dizer, foi mais sem graça e ao final do dia, uma de nós teve a ideia de “isolar” a vizinha encrenqueira, como a chamamos naquela ocasião. E durante uma semana ignoramos a menina, ela falava e a gente passava reto, sem nem olhar pra cara dela, as brincadeiras eram escolhidas longe da sua casa e, suprema maldade, numa tarde enchemos a calçada dela de pedrinhas, de cascas de bananas e laranjas, pra que ela entendesse que nós a achávamos um lixo. 

Mas a diretora da escola onde estudávamos morava na rua de cima. E não por acaso passou em frente à casa da nossa encrenqueira e viu a “lixarada” na calçada. Esperta como ela só, sabedora dos nossos encontros e brincadeiras de rua, logo imaginou o que estava acontecendo… Bom, pra encurtar a história, no dia seguinte, fomos todos chamados à sua sala e ela nos deu uma lição de cidadania, ética e de respeito ao outro. Lembro-me claramente de ela nos perguntar até onde esperávamos ir com aquela atitude, que estávamos perdendo uma excelente oportunidade de tentar entender as razões que levam uma pessoa a não querer conversar e nem aceitar as decisões da maioria. E mais, que sem diálogo e escuta entre as partes, perderíamos um amigo e as amizades são uma das razões pelas quais aprendemos a ser pessoas melhores nessa vida. E aí, ela chamou a agora não mais encrenqueira, para conversarmos todos juntos. A nossa amiga, depois daquele dia, tornou-se a maior defensora do debate, em qualquer situação.

Tudo isso para dizer que cancelar pessoas, isolá-las, ignorá-las, desconsiderá-las, é prática comum entre os seres humanos e desde a mais tenra idade. E que aprender a conviver com o diferente, o contraditório, o desigual é tarefa para a vida inteira. É algo que se aprende e se ensina com a experiência: em casa, na escola, no clube, na loja, no banco, nos espaços públicos que nos testam a todo momento porque colocam o outro à nossa frente. Mas se cancelar não é novidade, porque estamos, em pleno século XXI, às voltas com essa questão, que tem afetado desde as celebridades do universo do entretenimento até intelectuais de peso, no mundo inteiro?  

Porque a internet não é mais a ágora na qual todos os cidadãos podem expressar livremente suas opiniões, como era o seu projeto inicial. Tornou-se uma arena, onde presenciamos diariamente uma guerra de narrativas. Escondidos pelo anonimato que as redes sociais nos permitem, fazemos ouvidos moucos a quem não pensa como nós, a quem não professa os mesmos credos — sejam eles religiosos ou não — a quem nos confronta com outras possibilidades e verdades que teimamos em ignorar. E aí, é mais fácil cancelar, não ver, não escutar, não levar em conta, não se inquietar ou se incomodar. O desconforto não cabe na arena. As narrativas das redes sociais são lineares, os algoritmos que selecionam para nós os mesmos cenários, personagens, e até enredos, nos garantem uma travessia sem sobressaltos pela selva da internet, que preferimos não desbravar.

As bolhas das redes sociais eliminaram os confrontos, o benefício da dúvida, e elegeram  os likes para conferir credibilidade às informações. Isto é, quando são informações, pois na maior parte das vezes são opiniões revestidas da arquitetura informacional e só quem aprende a duvidar, a pesquisar, checar, a ler com olhos de ver o texto, subtexto e o contexto, consegue avaliar o que está sendo dito e  então, se desacomodar, concordando ou não, mas seguindo pesquisando, aprendendo e ensinando.

No fundo, o fenômeno do cancelamento mobiliza preocupações que sempre estiveram presentes no debate: o diálogo e a crítica não devem ser interditados nem pelo autoritarismo nem pelas boas intenções”, escreveu a ombudsman do jornal Folha de S. Paulo, Flavia Lima (em 02.08.20). O cancelamento é o debate interrompido, é a censura às inúmeras faces de uma mesma situação, ideia, tese ou opinião, é o “cala- boca” violento a tudo o que a democracia custou tanto a conquistar.

Para mim, a questão não é cancelar ou não cancelar, mas praticar incansavelmente o direito à liberdade de pensamento, para que ele não fique preso ao “lugar de fala”, à autoridade dos cânones, ou aqueles que se autointitulam como especialistas e por isso, donos da verdade. Essa prática, por mais simples que pareça, precisa estar presente com frequência nas salas de jantar das famílias, nos almoços de domingo, nas salas de aula, nos grupos de WhatsApp. Talvez tenhamos que relembrar o que me disse a diretora da escola: que sempre vale a pena deixar de interditar alguém ou alguma ideia em prol das relações, das amizades e principalmente, da livre circulação das muitas vozes que compõem a nossa sociedade, incluindo a todos em suas dissonâncias também, que é do que se alimenta a democracia.

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Januaria Cristina Alves

Mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É consultora de projetos de Educação e Comunicação para empresas e instituições educacionais e realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens, sobre Educação Literária, Alfabetização Midiática e Informacional e Storytelling.

http://www.entrepalavras.com.br

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