Bibliotecas são outras maternidades

Por Sérgio Alcides - 12 fev 2020 - 4 min

“Macunaíma” constava da inesquecível biblioteca da minha escola. Se fecho os olhos, posso encontrá-lo na mesma posição de sempre, entre as obras de Mário de Andrade, na bela edição do INL, de inícios dos anos 1970. No salão amplo, de pé direito alto, o silêncio dividia o espaço com as estantes, as mesas de estudo e o banho de luz que entrava pelos janelões de madeira. Minhas seções favoritas estavam na fileira longa à esquerda de quem entrava. À direita, mais perto da porta, ficava o balcão de madeira escura, atrás do qual trabalhavam as bibliotecárias, Francis e Cristina, sempre complacentes com quem ia ali para matar aula, como era o meu caso. Enquanto olhava os livros de literatura brasileira e fazia escolhas, eu podia espiar o balcão e a entrada, através das prateleiras. Se o inspetor chegasse, eu me espremia mais atrás, junto da parede, onde ficava escuro. Com sorte, ele passaria sem me ver. Eu sabia que não seria denunciado – nem pela Francis, que era mais severa, e muito menos pela Cristina, que era pura doçura. Levei “Macunaíma” para as férias do verão de 1983. Encadernado em vermelho, douramento apagado, na lombada, um pouco sujo. Ficou esquecido por semanas a fio de vida experimental e bagunceira. Até que uma gripe forte me prendeu em casa. Os amigos gritavam por mim, da rua. Mas a febre alta me impedia de ir com eles. Só achei uma saída: “No fundo do mato-virgem…” Decidi entrar. Nunca mais voltei.

Nossa, demorei muito a compreender o que se passava! Quando cheguei à metade, aceitei o triste fato de que não estava entendendo absolutamente nada. Tive que recomeçar umas duas vezes. E, naquela idade, aos 15 anos, me lembro de ter me obcecado a dúvida sobre o sentido do verbo “brincar” nesse livro.

Bibliotecas escolares são outras maternidades, lugares onde se nasce outra vez. Potencialmente, são começos de liberdade, por tudo o que oferecem, mas principalmente por exigirem uma escolha – e uma escolha feita pode virar um traço, tornar-se uma parte da gente. Por isso deveriam ser consideradas como recintos sagrados, onde a regra mais importante é o silêncio, para que a consciência particular de cada um possa abrir-se para a comunicação mais ampla do mundo, e por aí iniciar uma viagem pessoal, também em busca de si e do mundo que se deseja. É uma desgraça que pessoas inteiramente alheias a esses trânsitos estejam em posição de neles interferir, para impedi-los ou confiná-los aos limites estreitos da própria imbecilidade. Por sorte as escolas ensinam também, sem querer, a revolta e o sentimento de indignação. O que não deixa de ser uma esperança, num país como o nosso, onde a educação é segregada e as escolas consideradas ótimas – privadas – são incapazes de ensinar as noções mínimas de civilidade e cidadania.

O que eu não daria para entrar outra vez nessa biblioteca? Suponho que ainda exista, mas sei que não, na verdade não existe mais. Anos depois da minha formatura, a escola foi invadida por traficantes. Acabou sendo transferida para outros prédios da Uerj (era um colégio de “aplicação”). Hoje, pelo que sei, está em outro endereço do mesmo bairro, o Rio Comprido. Duvido que as instalações sejam tão boas quanto no meu tempo: era um prédio excelente, se não me engano uma antiga escola de enfermagem, com ótimos laboratórios (cheios de misteriosas substâncias…) e um terreno enorme, grande pátio, ginásio de esportes, área verde… Ficava na subida do morro do Turano. Áskesis*!


*Do grego antigo, conjunto de práticas ou exercícios de cunho espiritual, de onde deriva o substantivo “ascetismo”. (N. da E.)