Por Coletivo Leitor - 15 jul 2020 - 6 min
Em 1996 a editora Ática lançou, na coleção “Eu leio”, uma tradução integral do clássico Alice no País das Maravilhas, convidando ninguém menos que Ana Maria Machado para desembarcar em português do Brasil os saborosos jogos de palavras e o alto gênio de Lewis Carroll, um dos inventores do gênero nonsense, ao lado de seu conterrâneo Edward Lear.
Àquela altura já existiam algumas traduções da obra, em especial a realizada pelo poeta Sebastião Uchoa Leite (1935-2003), que, à diferença dos tradutores que o precederam, não pretendeu se dirigir apenas às crianças, reproduzindo simplesmente o entrecho do livro e deixando de lado a parte mais difícil de traduzir: o jogo intertextual, as citações literárias, trocadilhos e piadas linguísticas, sem os quais o nonsense carrolliano se degrada em mera insensatez, conforme explica Ana Maria Machado no posfácio à edição da Ática (“Lewis Carroll: um tímido que fez uma revolução”). Visando leitores experientes, Uchoa Leite cuidou de recriar em português a paródia de poemas oitocentistas ingleses, passíveis de serem identificados por esse leitorado com mais tarimba.
Outro foi o partido adotado por Ana Maria Machado, para quem importava também reconstituir os acenos paródicos sem, no entanto, sacrificar a “intimidade absoluta com a linguagem” e a “falta de cerimônia” que levam o autor a brincar com a tradição “como uma criança brinca com a própría sombra”. Assim, buscando conservar a familiaridade do leitor com as fontes tradicionais que o texto parodia, Ana Maria Machado optou por substituir as referências poéticas originais por alusões a cantigas folclóricas brasileiras ou a conhecidos poemas do cânone nacional, evocando, por exemplo, em vez de autores vitorianos, composições de Gonçalves Dias ou Vinícius de Moraes. Tal opção por um caminho intraparódico, por assim dizer, foi seguida, porém, cum grano salis, havendo também no livro por ela traduzido composições não paródicas, nas quais, sem descuidar dos aspectos fônicos e imagéticos, Ana Maria lançou mão de outros expedientes tradutórios.
A originalidade da escolha feita pela tradutora lhe rendeu, em 1997, a láurea “Altamente Recomendável”, concedida pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Vale reproduzir um trecho de um dos pareceres que embasaram a decisão do júri, assinado por Fátima Miguez:
É na trilha do imaginário popular brasileiro que segue a narrativa de Alice no País das Maravilhas na tradução de Ana Maria Machado. Este caminho de brasilidade marca a diferença fundamental dessa obra em relação “às várias Alices em português”, conforme explica a escritora que, ainda, esclarece: “procuramos fazer com que todos os poemas-paródia do texto fossem fáceis de identificar (como eram para o leitor britânico de seu tempo), mesmo sabendo que para isso fosse necessário mudar as referências iniciais a aproximá-las do leitor brasileiro jovem de final deste século XX”.
Os jogos de linguagem são, assim, o carro-chefe da literatura do inglês Lewis Carroll e, também, podemos acrescentar que esses artifícios metalinguísticos são determinantes da poética modernista brasileira. É esse diálogo intertextual que enriquece a narrativa de Alice no país das maravilhas e destaca a tradução brasileira de Ana Maria Machado na configuração de uma rede textual adaptada ao imaginário popular brasileiro.
(Miguez, Fátima. Parecer sobre a tradução de Ana Maria Machado para Alice no País das Maravilhas. Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2020.)
Vale dizer que tal abrasileiramento do clássico de Carroll é totalmente coerente com as trilhas abertas por Ana Maria Machado na criação da própria obra ficcional. Afirma ela em depoimento gravado no final de 2019 para o Coletivo Leitor:
[…] eu comecei [a escrever] experimentando muito, fazendo uma coisa que pouca gente fazia. Minha geração começou a fazer isso, que é escrever em português do Brasil, do jeito que a gente fala, familiar, coloquial. O Modernismo tinha tentado fazer isso, Mário de Andrade faz um pouco, os poetas, mas a ficção brasileira nos anos 60 e 70 ainda estava muito preocupada com certos padrões de bem-escrever. E a gente experimentou por aí.
(Veja o depoimento completo clicando aqui. Acesso em 15 jul.2020.)
Voltando, contudo, à Alice no País das Maravilhas, vale dizer que, de 1996 para cá, vimos surgir outras traduções da obra para o português, como a da poeta Margarida Vale de Gato (Relógio D’Água, 2000), em Portugal, e as de Nicolau Sevcenko (Cosac Naify, 2009), Vanessa Bárbara (Globo, 2014) no Brasil, para lembrar apenas algumas, sem mencionar as dezenas de adaptações – o que é prova da força desse clássico, publicado pela primeira vez há mais de um século e meio, em 1865, e da diversidade de modos pelos quais ele continua a ressoar entre nós.
Quase um quarto de século após a primera edição da Ática, o livro retorna com novo projeto gráfico e as ilustrações vibrantes de Thales Molina. Além disso, o livro traz um anexo ao final (“Outras leituras de Alice”), que comenta as repercussões extraliterárias da obra (nas artes plásticas, na música, no cinema, televisão, teatro), e uma bibliografia atualizada de e sobre Lewis Carroll, acréscimos feitos para valorizar ainda mais a estupenda tradução de Ana Maria Machado.
Para quem quiser saber mais detalhes desse lançamento do Catálogo Somos 2020, a autora participou da live “Alice no País das Maravilhas: traduções, adaptações e atualidade do nonsense”, a qual é possível assistir na íntegra apenas se cadastrando no formulário:
Ao lado de Ana Maria Machado participaram a escritora, tradutora e ensaísta Dirce Waltrick do Amarante, professora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e o poeta, dramaturgo e tradutor Maurício Arruda Mendonça, que adaptou para o teatro Alice através do espelho. Os três conversaram sobre diferentes aspectos da obra de Lewis Carroll, sob mediação de Fabio Weintraub e Laura Vecchioli, do departamento de Literatura da Somos.
Imagem de capa: Detalhe da capa de Alice no País das Maravilhas (São Paulo: Ática, 2020), ilustrada por Thales Molina.