ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: A CASA DE MACHADO DE ASSIS

Por Alexandre Azevedo - 10 nov 2021 - 11 min

Idealizada pelo escritor Lúcio de Mendonça (1854-1909), fundada por Machado de Assis (1839-1908) e Joaquim Nabuco (1849-1910) em dezembro de 1896, a Academia Brasileira de Letras ou simplesmente Casa de Machado de Assis, tornou-se a instituição literária mais amada e odiada do Brasil. Apesar de símbolo do conservadorismo intelectual, teve a Academia, ao longo de sua história, alguns rompantes de liberalismo. Entretanto, antes de entrarmos no mérito desta questão, vale o registro da importância de Joaquim Nabuco não só como fundador da citada Casa, mas como na sua consolidação. Seguindo o modelo histórico-literário da Academia Francesa, coube a Machado de Assis a ala literária e ao autor de Minha Formação, a histórica. Sua influência sobre os outros acadêmicos era tão grande que como não aceitar em seu quadro de escritores Graça Aranha (1868-1931), que na época de sua candidatura, não havia sequer publicado um livro – e ter um livro publicado era condição sine qua non para a inscrição de quem almejava uma cadeira de imortal –, mas que era o fiel escudeiro e secretário particular de Joaquim Nabuco? E que história teve o grande romancista de Canaãdentro da Academia. Conhecido como o padrinho dos novos escritores, Graça Aranha, representante do pré-modernismo na Semana de Arte Moderna – foi justamente Graça Aranha quem abriu a Semana com uma conferência sobre a arte modernista –, revoltando-se contra o pensamento acadêmico de seus confrades, gritou a plenos pulmões: se a Academia não se renova, que morra a Academia!, desligando-se dela, sem, contudo, ter deixado de ser um imortal. Aliás, não há explicação melhor que a do poeta parnasiano Olavo Bilac (1865-1918) – um dos vários sócios fundadores – sobre o porquê de chamar todo acadêmico de imortal: o acadêmico é imortal porque não tem onde cair morto! O certo é que a Academia teve lá as suas inúmeras “pisadas na bola”, mas também os “gols de placa”.

A primeira “bola-fora” da Academia foi a polêmica eleição de Mário de Alencar (1872-1925), filho do grande amigo de Machado, José de Alencar (1829-1877). Com a morte da esposa, Carolina Novaes, “o Bruxo do Cosme Velho” praticamente só aceitava sair de casa se estivesse na companhia de Mário de Alencar, este tratado por Machado como um filho, que nunca teve. E, por esse motivo, deixou de frequentar as reuniões semanais da Academia, já que Mário de Alencar não era acadêmico, portanto, impedido de entrar na pequena sala de reuniões. A solução para tal impasse estava debaixo dos fartos bigodes dos intelectuais: fazer do filho do Alencar um imortal! Dito e feito. Em 1905, três anos antes da morte de Machado, Mário de Alencar assumiu a cadeira que antes era de José do Patrocínio (1853-1905), tendo sido recebido por Coelho Neto (1864-1934), outro grande amigo de Machado de Assis. 

E o que dizer da eleição de Getúlio Vargas (1882-1954)? Ninguém ousou a entrar na disputa pela cadeira 37, anteriormente ocupada por José de Alcântara Machado (1875-1941). Eleito por unanimidade, Getúlio Vargas proferiu um dos mais belos e profundos discursos sobre o árcade-maior, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), o patrono da cadeira! E nessa linha getuliana, de pseudoescritores, um número considerável já exibiu, de maneira imponente, o fardão acadêmico: Roberto Marinho (1904-2003), Marco Maciel (1940), Ivo Pitanguy (1926), além de Alberto Santos Dumont(1873-1932), o “pai da aviação”, que não chegou a tomar posse. Também não podemos nos esquecer das incríveis recusas de autores que, hoje, seriam convidados a fazer parte do tão disputado assento: Cruz e Sousa (1861-1898), Lima Barreto(1881-1922), Monteiro Lobato (1882-1948), Oswald de Andrade (1890-1954), Mário Quintana (1906-1994), célebre autor do Poeminha do contra (os acadêmicos que o rejeitaram por algumas vezes): Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão. / Eu passarinho!… Há também aqueles nomes que não podiam (e não podem) nem cogitar a possibilidade de ingressar na casa machadiana, dentre os famosos antiacadêmicos, podemos citar: Graciliano Ramos (1892-1953), Érico Veríssimo (1905-1975), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Manoel de Barros (1916-2014), Antonio Candido (1918-2017), Dalton Trevisan (1925).

Em contrapartida, a mesma academia anotou os seus “gols de placa” em eleições jamais pensadas, surpreendendo até o mais antiacadêmico de todos, a começar por João do Rio (1881-1921), pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, o cronista da cidade, o nosso “Oscar Wilde brasileiro”, o primeiro a exibir o pomposo fardão acadêmico. Outra “bola-dentro”, foi a eleição de Rachel de Queiroz (1910-2003), quebrando um preconceito de 81 anos, fazendo com que a primeira mulher finalmente se tornasse uma imortal – anos antes a mesma Academia havia recusado a candidatura de Dinah Silveira de Queirós (1911-1982), que só viria a ser eleita em 1981, além da escritora e jornalista Amélia de Freitas Beviláqua, esposa do imortal jurista Clóvis Beviláqua (1859-1944). Este, indignado com tal recusa, escreveu:

A interpretação dada aos Estatutos da Academia pela maioria dos membros da corporação é, manifestamente, ábsona (discordante). Repelem-na, além dos preceitos elementares de hermenêutica, os sentimentos da justiça e a mentalidade contemporânea, que não considera a inteligência da mulher, no poder criador e no brilho, inferior à do homem e lhe abre espaço a todas as nobres conquistas do espírito, com alto proveito para a civilização (FERNANDO JORGE, p.161).

Para amenizar esta falha tão grave, Josué Montello (1917-2006), um dos mais ardorosos defensores da Academia Brasileira de Letras, em seu Anedotário geral da Academia Brasileira, escreveu sobre uma possível presença da mulher entre os acadêmicos:

Quando faleceu Francisca Júlia da Silva, coube a Humberto de Campos fazer-lhe o necrológio, numa das sessões ordinárias da Academia. Grande admirador da poetisa paulista, Humberto ressaltou, no seu discurso, que, se o quadro dos sócios efetivos da Casa de Machado de Assis admitisse a presença feminina, a poetisa de Mármores, com toda a certeza, teria participado desse quadro (MONTELLO, p.84).

Outra grande polêmica foi a eleição de Guilherme de Almeida (1890-1969), o primeiro modernista a se tornar imortal, abrindo as suas imponentes portas para outros modernistas, como Manuel Bandeira (1886-1968), Cassiano Ricardo (1895-1974), responsável por convencer a Academia comemorar o aniversário da Semana de 22, evento eminentemente antiacadêmico, Menotti Del Picchia (1892-1988). Também vale a pena registrarmos a eleição do cineasta Nélson Pereira dos Santos (1928-2018), que transpôs para a tela obras consagradas de Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa (1908-1967) – este o escritor que menos tempo ficou como imortal, apenas 72 horas! A histórica presidência de Nélida Piñon (1937), a primeira mulher a presidir uma academia nacional, vale também um registro. 

Excetuando-se aí Machado e Nabuco, Euclides da Cunha (1866-1909) sempre foi a “menina dos olhos” daquele Silogeu. O sucesso esplendoroso de Os sertões fez com que o novel escritor ingressasse não só no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro como também na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 7, cujo patrono é o condoreiro poeta dos escravos, Castro Alves (1847-1871), sucedendo ao crítico literário e um dos sócios fundadores Valentim Magalhães (1859-1903). Entretanto, Euclides da Cunha também deixou escapar farpas à instituição, numa carta a Domício da Gama, datada de 5 de agosto de 1907, por ocasião de uma tentativa de reforma ortográfica:

Não sei se aí já chegaram notícias da Reforma Orthographica… (Aí deixo, nestes maiúsculos e nestes HH, o meu espanto e a minha intranzijencia etimolojica!) Realmente, depois de anos de alarmante silêncio, a Academia fez uma coisa assombrosa: trabalhou! Trabalhou deveras durante umas três dúzias de quintas-feiras agitadas – e ao cabo expeliu a sua obra estranhamente mutilada, e penso que aborticida (FERNANDO JORGE, p.48).

Pulando de emprego em emprego, vivendo em precária situação financeira, Euclides conhecera uma academia bem distante do que ela é hoje: uma rica instituição capaz de pagar uma boa quantia em dinheiro para todo aquele imortal que frequentar as reuniões semanais com direito ao tradicional chá com biscoito – não podemos nos esquecer, obviamente, do mausoléu a que todo “imortal que morre” tem, contrariando assim a máxima bilaquiana: imortal porque não tem onde cair morto! Naquela época de Euclides, a Academia não passava de uma salinha pobre alugada no centro do Rio de Janeiro pelos acadêmicos, sob a presidência do já então viúvo Machado de Assis, e que, por esse motivo, já não estava nem um pouco interessado em presidi-la. Se de um lado, a Academia teve como presidente o seu fundador, por outro ela também teve a sorte de ser presidida pelo jornalista Austregésilo de Ataíde (1898-1993) que, por quase 35 anos à frente da instituição, de 1959 a 1993, fez com que o “Petit Trianon brasileiro” se tornasse uma grande “empresa literária”. Essa virada deveu-se e muito ao livreiro e editor luso-brasileiro Francisco Alves (1848-1917) que fez da Academia a sua herdeira universal, espécie de “Alfred Nobel brasileiro”, com a condição de premiar os escritores. Afrânio Peixoto não viu com bons olhos a herança deixada pelo livreiro:

(…) há muito estou convencido de que, com o seu legado, o velho Alves a matou. A herança do livreiro tornou-a requestada, não pelos mais capazes, mas pelos mais insinuantes. Insinuantes das mais diversas formas: pelo prestígio, pela força, pela afabilidade. Tornando-se rica, a Academia se fez mundana e muitos querem entrar para lá apenas pela fama social que ela empresta aos seus membros (FERNANDO JORGE, p.268).

Pobre Euclides – pobre agora no sentido metafórico – por ter frequentado a Academia por apenas três míseros anos – tomou posse em dezembro de 1906 e morreu em agosto de 1909 –, já que tombou mortalmente na varanda da casa da Piedade, alvejado pelos tiros do jovem tenente Dilermando de Assis (1888-1951), amante de sua mulher Ana. Levado o corpo do imortal para ser velado pelos acadêmicos, notamos – pela fotografia – o quanto era pobre aquela Academia, sem a pompa de hoje que lhes é oferecida. E Dilermando? O que foi feito dele? Baixou hospital, já que também fora alvejado por Euclides da Cunha, e, após algum tempo entre a vida e a morte, prevaleceu a primeira. Entretanto, foi levado à prisão, para depois ser julgado e absolvido, graças ao brilhantismo do então rábula Evaristo de Moraes (1871-1939). E Ana da Cunha? Tornou-se Ana de Assis. Mas não viveram felizes para sempre. Sete anos após a “Tragédia da Piedade”, outra tragédia, de igual proporção, comoveu o povo brasileiro: Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, com o intuito de lavar a honra do pai, saiu à caça de Dilermando pelas ruas do Rio do Janeiro. Incrivelmente, a cena se repetiu: Dilermando e Euclides da Cunha (filho) trocaram tiros. E como da primeira vez, Euclides caiu morto. E Dilermando? O que foi feito dele? Baixou hospital, já que também fora alvejado por Quidinho, e, após algum tempo entre a vida e a morte, prevaleceu a primeira. Entretanto, foi levado à prisão, para depois ser julgado e absolvido, graças ao brilhantismo do ainda rábula Evaristo de Moraes, que acabaria se formando em Direito somente aos 45 anos de idade, tendo sido o orador de sua turma.

E Ana de Assis? Após separar-se de Dilermando, reatou o casamento. E mais uma vez não foram felizes para sempre… Ao descobrir que agora era Dilermando que possuía uma amante, separou-se dele definitivamente.

E Dilermando casou-se. E desse novo casamento nasceu Dirce de Assis. E dona Dirce tornou-se Dirce de Assis Cavalcanti, esposa do diplomata e do escritor Geraldo de Holanda Cavalcanti* (1929), que, sucedendo ao bibliófilo José Mindlin (1914-2010), tornou-se o mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras! Para a Academia, caso encerrado. Mas Euclides da Cunha continua sendo a sua “menina dos olhos”…  

Referências bibliográficas

Jorge, Fernando. A Academia do fardão e da confusão, São Paulo: Geração Editorial, 1999.

Montello, Josué. Anedotário geral da Academia Brasileira, 2ª ed. São Paulo: Livraria Martins editora, 1974.

Alexandre Azevedo

Alexandre Azevedo é professor de literatura e escritor. Autor de mais de 120 obras. Já publicou, entre outros, Que azar, Godofredo! (Atual), O vendedor de queijos e outra crônicas (Atual), Três casamentos (Atual), Poeminhas fenomenais (Atual), O menino que contava estrelas (Atual), A lua e a bola (Formato) e A última flor de abril (Saraiva).

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