A Independência do Brasil e suas narrativas

Por Jurandir Malerba - 01 set 2021 - 15 min

É um desafio falar da Independência do Brasil frente à Portugal num espaço tão curtinho. Primeiro, porque a Independência é um fato histórico que foi alçado à condição de “marco fundacional” da nação-Estado brasileira, o tema mais pesquisado da história do Brasil em seus dois séculos de vida. Sobre nenhum outro evento da história brasileira se pesquisou, escreveu, debateu e se discordou tanto quanto sobre a Independência.

Portanto, seria impossível, até desonesto, apresentar aqui uma narrativa única, pretensamente “a” narrativa deste evento fundamental da nossa história. Então, atenção: às vésperas das comemorações do bicentenário em que nós estamos, já começa a bombar uma avalanche de narrativas – novas ou repaginadas – da Independência. Cautela nunca é muita: se aparecer algum autor pop ou uma série midiática qualquer dizendo que vai contar a “verdadeira história”, “a história secreta”, a história que você nunca leu nos livros, a história que teu professor não te contou… não acredite. Tem grande chance de ser picaretagem. 

A Independência é um acontecimento eminentemente político, então, diz respeito às disputas e aos interesses de sujeitos investidos de poder sobre outras pessoas. Mas não vou me deter na cronologia dos fatos políticos, que tem a ver com os desdobramentos das guerras atlânticas, das revoluções liberais, da queda de Napoleão e o reagrupamento das velhas monarquias europeias de Antigo Regime – rearranjo geopolítico que levou à elevação do Brasil a Reino Unido em 1815. Que dizem respeito também à Revolução Constitucionalista do Porto em 1820 e o assentamento das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa – arena onde se desenrolaram as jogadas decisivas da nossa ruptura política. Nem vou considerar como esses acontecimentos lá no “velho reino” repercutiam aqui, levando à intensa mobilização de grupos de interesse, agrupados em torno de sociedades secretas, fonte de uma enxurrada de panfletos incendiários. Nem vou me deter nos personagens desse enredo, os paulistas agregados em torno dos irmãos Andrada, os fluminenses em torno do grupo dos jornalistas Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira e Januário da Cunha Barbosa. E claro, o pivô dessas disputas: dom Pedro, que ainda não era “primeiro”. Personagens que vieram depois a compor o panteão dos “heróis” nacionais.

            A Independência, como qualquer outro evento, guarda dimensões e temporalidades que vão muito além da sucessão dos acontecimentos luminosos narrados nos jornais, que depois foram inscritos nos manuais escolares. Tempos mais dilatados, que ecoam os primeiros séculos da formação do Brasil, que, de um modo silencioso, mas estrutural, definiram os rumos da Independência e que, em grande medida, reverberam até hoje.

            Estou me referindo ao processo colonizador em curso há três séculos. Quero destacar aqui qual era perfil dos homens que abraçaram a ruptura política como solução para os impasses que se tornaram visíveis e insuperáveis nas Cortes. Pois, até meados de 1822, os grupos dirigentes das várias porções do Império Ultramarino português não desejaram a separação. Ao contrário, todos os agentes políticos da época buscaram, de todos os modos, uma solução conciliatória que preservasse a unidade do reino português, na forma de um império dual, com duas sedes. Mas não conseguiram se entender quanto ao funcionamento e, sobretudo, à distribuição do poder nesse império dual, levando à ruptura. Depois de falar da formação da elite dirigente que promoveu a Independência, vou discorrer sobre um projeto editorial muito bonito, que estará disponível logo, logo pelo selo Ática: o Almanaque do Brasil nos tempos da Independência.

            Sobre a elite promotora da Independência, é importante destacar que os portugueses da colônia – pois não existia Brasil e ia levar um bom tempo até que essa entidade viesse a existir de fato! – compunham uma classe social muito consciente e ciosa dos seus interesses, daquilo tudo que constituía a base de seu poder econômico e de seu prestígio social: a exploração dos recursos naturais do território brasileiro e da força de trabalho. Recursos naturais encravados no subsolo (metais e pedras preciosas sobretudo) e gerados no solo, na agricultura tropical. Força de trabalho baseada na coerção, no trabalho imposto, na escravidão abastecida primeiro com braço indígena e depois com africanos e africanas traficados no valioso comércio intercontinental de almas. Domínio sobre a terra, escravidão e tráfico constituíam a base do poder dessa classe, que veio se constituindo durante os três primeiros séculos e que foi a principal fiadora da Independência.

Esses sujeitos da elite eram primeiramente funcionários da administração colonial, a quem a Coroa concedia privilégios de exploração, para consolidar o domínio do território e extrair um bocado de sua riqueza na forma de impostos e taxas. Logo, esses portugueses foram se estabelecendo no topo da pirâmide social, seus interesses assentados na produção agrícola, no comércio interno e internacional, no tráfico negreiro, no comando dos altos e lucrativos postos da administração. Foram percebendo as afinidades de interesse que ligavam eles entre si. O que parece fundamental nisso tudo é que esses sujeitos — portugueses d’além-mar, à frente dos negócios do Estado — foram plantando e colhendo seus próprios interesses, como grandes proprietários rurais, senhores da terra, como exportadores de commodities e traficantes de escravos. Foram ganhando status social e projeção política nos circuitos coloniais, casaram suas filhas e filhos com filhos e filhas de outros poderosos, expandindo suas redes de sustentação e poderio político, tanto contra “inimigos internos” (escravos e pobres) como contra inimigos externos, para depois se tornarem os próprios portugueses do reino.

Nesse processo de longa duração dos três primeiros séculos da colonização portuguesa na América, se assiste à formação de uma classe social que se distingue e se identifica a partir de interesses econômicos de classe proprietária de terras, de escravos e beneficiária maior da condição colonial do Brasil. Quaisquer traços identitários e credos políticos muito rígidos eram fluídos para essa classe. Ela foi monarquista convicta e fiadora da unidade do império enquanto esperava de Lisboa as nomeações e distinções (como títulos e comendas honoríficas). Foi republicana quando vislumbrou no republicanismo a força que precisava para enfrentar a pressão tributária da Coroa, que começou a ameaçar seus negócios (como foi o caso na Inconfidência Mineira) — depois da sangrenta revolução de São Domingos (Haiti), que eclodiu em 1791 e durou até 1804. Essa classe dominante em formação no Brasil percebeu que uma república não seria solução, mas uma ameaça à sua condição e seus privilégios, e se reconciliou com a Coroa. Nos anos da Independência, ela aderiu à solução monárquica quando percebeu que a monarquia seria a salvação para seus negócios comerciais na Europa e aliada fundamental contra os inimigos domésticos. E finalmente abraçou a Independência, pela via conservadora, quando a metrópole, em vez de alavanca, mostrou-se de novo obstáculo a seus interesses.

Essa classe dominante de origem portuguesa, essa aristocracia rural forjada no tráfico humano e na escravidão, de certo modo foi tomando consciência de si enquanto formulava seus planos para o Brasil, mas sempre em seu próprio benefício. À época da Independência, ela tinha plena consciência de que a base de seu poder estava na terra e na escravidão. Foi o projeto dessa classe que se sagrou vitorioso no contexto da saída do Brasil da condição colonial. O preço pago pelos brasileiros para o Brasil deixar de ser colônia foi se submeter a essa classe latifundiária e escravista, que tomou pra si a tarefa de construção de um Estado à sua imagem e semelhança. Um Estado brasileiro que nasceu monárquico, resultante dos acordos da Independência, formatado na Constituição de 1824 e consolidado ao longo do século XIX. Classe que jamais vacilou em usar de todos os meios, inclusive da força bruta e a violência de Estado para garantir seus privilégios e manter as camadas populares controladas e a seu serviço. 

Em 1888, quando finalmente a escravidão foi legalmente abolida no Brasil, o Estado monárquico já não se prestava aos interesses dessa classe, que interrompeu o império com um golpe de Estado, batizado como Proclamação da República. Mas a República do Brasil, controlada pelos herdeiros dos senhores escravocratas de antes, que se tornaram os “coronéis”, continuou autoritária e elitista, empenhada na conservação da concentração da terra, da renda e do poder nas mãos e em benefício dos mesmos estratos superiores, com a interdição da maioria da população de acesso à cidadania. 

Hoje, às vésperas do marco do bicentenário da Independência, devemos ficar atentos. Certamente vão aparecer versões romantizadas desse processo, de como ele foi pacífico, ordeiro e benéfico para o “povo brasileiro”; do quanto devemos àqueles homens sábios e heroicos, às instituições monárquicas, à “pátria-mãe portuguesa”. Versões que se arrogarão serem as verdadeiras histórias, as histórias não contadas, aquelas que seu professor de história nunca lhe contou. Desconfie de todas. Desconfie dessas narrativas. Essas versões elidem a história dos grandes contingentes de homens e mulheres que não só não foram convidados a participar das grandes decisões, como a Independência, mas que foram oprimidas e silenciadas por aqueles que se beneficiaram delas. 

Tempos insanos foram aqueles da Independência, de grandes revoluções atlânticas, de mudanças bruscas na vida das pessoas, como já começou a ocorrer com a fuga da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, fugindo da invasão das tropas de Napoleão a Portugal. 

Eu conto um pouco dessas histórias num belo livro que está para sair pelo selo Ática, a ser lançado em breve pela SOMOS Educação: Almanaque do Brasil nos tempos da Independência. Almanaques são um gênero fantástico. Além deles organizarem nossas vidas no tempo linear do suceder dos anos, eles ainda cumprem outra função muito importante. Quando as sociedades elegem algum acontecimento de sua história como digno e necessário de ser lembrado, “comemorado”, elas instituem um elemento de identidade e coesão social. Isso sempre existiu em todo tempo e lugar, mas foi particularmente forte a partir do século XIX, quando as nações começaram as ser inventadas. Por isso, escolhi esse formato para contar a história do Brasil da Independência: ele casa perfeitamente com o tempo das comemorações.

Então, para esse projeto, a ser lançado em meio às celebrações do bicentenário, vi um potencial enorme no formato almanaque. Eu sentia a necessidade de fugir da narrativa exclusivamente política, de fazer um almanaque da Independência para evitar cair na história dos fatos políticos, suas circunstâncias, causas e consequências e os grandes personagens que povoam o panteão nacional. Muito além das coisas da política, percebi que o gênero me permitiria reconstituir um pouco da complexidade dos tempos da Independência. Um tempo de lutas, disputas sangrentas dentro de um grande mosaico que vinha sendo montado há três séculos, sobre um extenso tabuleiro que era o território brasileiro. 

As temporalidades que atravessam um acontecimento são infinitas. No nosso caso, centenas de povos completamente alheios ao calendário cristão e ocidental habitavam o Brasil à época daquilo que entendemos por Independência. Gentes que desconheciam esses acontecimentos da política. Povos originários que vinham sendo desempossados, escravizados e mortos pelos colonizadores desde o primeiro encontro, em 1500. A eles vieram se juntar milhões de africanos e africanas, trazidos pela ganância e pelo tráfico intercontinental, que aqui continuavam chegando para serem escravizados à época da Independência – e ainda seriam por décadas. E tem ainda o tempo das guerras atlânticas, a partir do qual a Independência sempre foi narrada. Junte-se a tudo isso o tempo da memória, de como esse acontecimento, que foi tomado como marco fundador da nação, vem sendo apropriado em outras ocasiões, como a que nos encontramos às vésperas do bicentenário. Essas temporalidades emaranhadas me inspiraram a escrever esse Almanaque do Brasil nos tempos da Independência.

Essa multiplicidade de temporalidades que atravessam o evento da Independência move-se, no livro, num perpétuo vaivém. Ora retrocede ao tempo longo, secular da colonização, da exploração predatória dos recursos naturais, da escravidão e da produção mercantil, da constituição da sociedade patriarcal, dos agentes e ações da administração da Coroa portuguesa na América, dos movimentos de resistência, das guerras, do mercado e da tecnologia. Ora se projeta no futuro, nas adversidades que a Independência mesma reproduziu ou criou, nos usos de sua memória, nas comemorações, nas lembranças e nos esquecimentos que os homens ativamente produziram sobre ela. Muitos são os tempos que cruzam esses passados presentes!

Seguindo uma cronologia, armei o texto do Almanaque com inserções de aspectos estruturais daqueles tempos, como a presença dos povos originários e as atitudes do Estado português para com eles, definidas a partir dos decretos joaninos declarando “guerra justa” e infinita aos kaingang do Rio Doce; o tráfico negreiro e a escravização de africanos e afrodescendentes, assim como algumas ruidosas explosões de rebeldia e resistência negra; questões macroeconômicas, que logo animariam os debates da Independência, das quais a abertura dos portos brasileiros às “nações amigas” é exemplo; o patriarcalismo e a situação das mulheres na sociedade; o cotidiano e a sociedade de Corte. E, claro, as coisas da política de Estado, antes e durante a Independência. Misturadas com tudo isso entram referências cruzadas à memória e às comemorações da data em outros tempos, assim como a reverberação no tempo presente de alguns dos tópicos tratados. 

O formato almanaque foi tão versátil para o cruzamento desses tempos diversos da Independência que me permitiu, por exemplo, ao falar da abertura de caça aos Kaingang, abrir para essa guerra perene, que já dura cinco séculos, reiterada por personagens como o médico teuto-brasileiro Hermann von Ihering, então diretor do Museu do Ipiranga, em São Paulo, e o engenheiro e político Paulo de Frontin; e depois pela ação da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), que vitimou pelo menos 8500 indígenas, segundo dados da Comissão Nacional da Verdade; ou, ainda, a política atual do Estado brasileira, que vem legalizando a posse da terra por grileiros em terras indígenas.

O formato almanaque me permitiu falar do flagelo da escravidão, mas também das lutas de resistência como dos haussás, na Bahia, em 1814 e 1816; do pós-abolição e até do racismo estrutural persistente, manuseando desde uma imagem do viajante bávaro Johann Moritz Rugendas, os “cartões postais” do fotógrafo Cristiano Jr, a carta que o abolicionista Luís Gama enviou a seu amigo Lúcio de Mendonça em julho de 1880. E misturar tudo isso com as condições de trabalho análogo à escravidão ainda persistente entre nós, a exclusão e a violência de Estado contra os afrodescendentes, assim suas contribuições culturais, na arte e na religiosidade das matrizes africanas, do candomblé à capoeira e ao rap “Negro drama”, do Racionais MC’s, assim como as lutas antirracistas contemporâneas.

Me permitiu falar da etiqueta na aclamação de um rei europeu em terras brasileiras, usando uma descrição de um Luís Gonçalves dos Santos ou de um Joaquim dos Santos Marrocos, e uma gravura de Hyppolite Taunay, até a persistência dessas liturgias de reafirmação do poder no presidencialismo, reiteradas até hoje em nossa República. 

Pude ainda falar do patriarcalismo e da condição das mulheres, livres e escravizadas, no Brasil joanino e nos dias de hoje, trazendo informações das condições de trabalho e das taxas de feminicídio, mas também lembrando a história de luta das mulheres, como Nívea Floresta – professora e escritora –, das primeiras feministas, à época da Independência, e Berta Lutz e as sufragistas de 1932. 

Outro diferencial do Almanaque é que ele contará com belas ilustrações, produzidas pelo artista plástico Cordeiro de Sá especialmente para este projeto (uma delas ilustra este post). Um belo livro que procura contribuir para o melhor conhecimento de nós mesmos, como povo e como cidadãos e cidadãs, de nossa história às vezes tão mal contada. Que venha o bicentenário!

Jurandir Malerba

Jurandir Malerba é doutor em História Social (USP) e professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi professor visitante nas universidades de Oxford, Georgetown e Livre de Berlim. Autor, entre outros, de A corte no Exílio (Cia das Letras) e Brasil em Projetos (Editora FGV).

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