A Encíclica “Fratelli Tutti” e a Campanha da Fraternidade 2021

Por Coletivo Leitor - 25 nov 2020 - 7 min

Nestes tempos de pandemia, tempos tão diferentes, em que de forma inesperada nossas falsas seguranças ficaram expostas, o papa Francisco entregou aos católicos e, por que não, a todas as pessoas, independentemente de suas crenças, um novo documento: a encíclica “Fratelli Tutti – sobre a fraternidade e a amizade social”, tema que diz respeito a todos os seres humanos.

Nas palavras do papa Francisco,

Este novo documento não pretende resumir a doutrina sobre o amor fraterno, mas detém-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos. Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade. (F.T., p. 13)

As questões relacionadas nessa encíclica sempre estiveram entre as preocupações do papa Francisco, tanto que aparecem de maneira recorrente em diferentes situações, lugares ou reflexões do sumo pontífice. Um dos encontros que teve com outras lideranças lhe despertou a vontade de escrever esse documento. Foi o encontro com o grande imã Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dhabi. Não foi apenas um encontro diplomático, mas sim uma reflexão feita em diálogo e de um compromisso conjunto a partir do princípio de que todos os seres humanos foram por Deus criados com igualdade de direitos, deveres, na dignidade, e foram chamados a conviver entre si como irmãos.

São Francisco de Assis, em seus conselhos aos irmãos, dirigia-se a eles usando a expressão Fratelli Tutti, que dá nome à encíclica. Inspirada em um desses conselhos, destaca um convite ao amor que ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço geográfico, e nele declara feliz quem ama o outro, “o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si”.

Para ajudar a entender melhor a proposta da encíclica, o papa Francisco propõe a reflexão sobre a parábola do “Bom Samaritano”, na qual várias pessoas com funções importantes na sociedade passam e ignoram um homem que fora assaltado e ferido, um homem “abandonado”. Somente um parou, cuidou dele e lhe deu algo tão difícil de partilhar neste mundo apressado: o seu tempo. “Com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro.” (p. 42)

Enquanto caminhamos, tocamos nossas vidas, inevitavelmente nos deparamos com o homem ferido. Aliás, temos cada vez mais feridos. O pontífice diz, ainda, que “a inclusão ou exclusão da pessoa ferida, que sofre na margem da estrada, define todos os projetos econômicos, sociais, políticos e religiosos. Diariamente enfrentamos a opção de sermos bons samaritanos ou transeuntes indiferentes.”

Numa das tantas vezes em que Jesus foi testado pelos doutores da Lei, perguntaram-lhe o que deveria ser feito para herdar a vida eterna. Mesmo sabendo que a lei dizia que se “deveria amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”, o homem questionou quem seria o “próximo”. Para explicar melhor, Jesus contou a parábola do homem que foi assaltado e abandonado ferido, sem nada, em uma estrada. Um sacerdote passou por essa estrada, viu o homem caído, mas seguiu adiante. Passou também um levita, importante membro da sociedade, que viu o homem, mas se foi pelo outro lado. Um samaritano, habitante da Samaria, povo considerado impuro pelos judeus, também passou por ali… e por ele teve compaixão. Parou, cuidou do homem, limpou as feridas e o levou- até uma hospedaria. Deu dinheiro ao dono do lugar e pediu que cuidasse dele. Terminada a história, Jesus fez o seguinte questionamento: qual dos três fez-se mais próximo do homem que foi assaltado?

“Aproximar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, procurar entender-se, tudo isso se resume em ‘dialogar’”. Para nos encontrarmos e nos ajudarmos, precisamos “dialogar”. A ausência de diálogo demonstra que não se está preocupado com o bem comum, mas sim com as vantagens que o poder proporciona ou em impor o próprio modo de pensar.

É como dizia o poeta: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida” (Vinicius de Moraes, “Samba da benção”). Como seres humanos, desejamos nos encontrar, procurar pontos de contato, construir pontes, planejar algo que envolva a todos. Isso é tão forte que se tornou uma aspiração e um estilo de vida. A paz social é laboriosa, artesanal. Integrar, promover o encontro de realidades diferentes é muito difícil e lento, embora garanta uma paz real e sólida. Faz-se necessário gerar processos de encontro capazes de formar um povo que consiga “colecionar” as diferenças. Isso implica o hábito de reconhecer, ao outro, o direito de ser ele próprio e de ser diferente. A partir desse reconhecimento que se tornou cultura, algo inerente ao povo, torna-se possível a criação de um pacto social.

O papa Francisco começou a escrever “Fratelli Tutti” em janeiro, sem ter noção de que estaria por vir a pandemia causada pela COVID-19, que deixou evidente a incapacidade de agir em conjunto, mas também fez recuperar e valorizar tantas pessoas comuns. Nesse mesmo período, coincidentemente, no Brasil foi escolhido o tema da Campanha da Fraternidade para 2021: “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”. E será uma campanha ecumênica. Feliz coincidência.

Num contexto de polarização, individualismo e agressões, uma Campanha da Fraternidade ecumênica demonstra, na prática, o compromisso com o diálogo, com as diferenças. O tema escolhido se propõe a reafirmar que as diferenças nos enriquecem em vez de nos ameaçar.

Anualmente, a Igreja Católica no Brasil realiza a Campanha da Fraternidade durante os 40 dias que antecedem a Páscoa, período chamado de Quaresma. Quaresma é um tempo em que os cristãos são convidados a se dedicar à conversão e à reflexão espiritual. A Campanha da Fraternidade é uma forma de contribuir e estimular essa reflexão, partindo sempre de situações concretas.

Como manter e estimular o diálogo em tempos tão incertos como os que vivemos, caracterizados por conflitos, por afirmação e defesa de identidades, às vezes através de violência, racismo, xenofobia e outras práticas de ódio? Eis a grande motivação para a Campanha: convidar as comunidades de fé e as pessoas de boa vontade a pensar, avaliar e identificar caminhos para superar as polarizações e violências através do diálogo amoroso, testemunhando a unidade na diversidade.

Quem ama está sempre aberto ao diálogo. “O diálogo confere identidade ao amor cristão, não é apenas uma troca de ideias, de algum modo, é sempre um intercâmbio de dons” (São João Paulo II).

Num mundo de muros e polarizações, somos chamados a edificar pontes de fraternidade. O diálogo enquanto compromisso de amor é a certeza que nos une e nos envia em missão. Nesse processo, a Literatura pode ser uma forte aliada. Por isso, fizemos uma seleção de livros que mostram diferentes situações alinhadas ao tema e ao lema da Campanha da Fraternidade 2021.